“E todos o consideraram culpado de morte.”Marcos 14:64.
Seleciono
esta frase em particular porque o costume exige um texto; mas na realidade
seguiremos a narrativa inteira do julgamento de nosso Senhor diante do sumo
sacerdote. Veremos como o Sinédrio chegou à sua injusta sentença, e mais o que
fizeram posteriormente, assim, em um só sentido, estaremos nos apegando ao
nosso texto. Acabamos de ler três passagens: João 18:12-24; Marcos 14:53-65; e
Lucas 22:66-71. Por favor, tenham estas passagens em mente enquanto repasso a
infeliz história.
A
narração da aflição de nosso Senhor, se a estudamos cuidadosamente, é
extremamente desoladora. Uma pessoa não pode meditar nisto por muito tempo sem
derramar lágrimas; de fato, eu me vi forçado a abandonar minhas meditações
sobre este tema devido ao excesso de emoção. Contemplar os sofrimentos de um
Ser tão desejável em Si mesmo e tão amoroso para conosco, é suficiente para
fazer com que o coração se parta por completo. Contudo, esta desolação de
sentimentos é sumamente útil: seu efeito posterior é na verdade, admirável.
Depois
de chorarmos por Jesus somos transportados acima da nossa dor. Não há em
absoluto nenhuma consolação debaixo do céu como esta, pois as aflições de
Cristo eliminam o aguilhão de nossas próprias aflições, e as tornam inofensivas
e toleráveis. Uma sofrida contemplação da aflição de nosso Senhor diminui de
tal maneira nossas angústias, que chegamos a considerá-las como ligeiras
aflições, triviais demais, demasiadamente insignificantes para serem
mencionadas no mesmo dia. Quando acabemos de contemplar os agudos quebrantos do
Varão de Dores, não nos atreveremos a registrar-nos de forma alguma na lista
dos afligidos. As feridas de Jesus destilam um bálsamo que cura todos os
ferimentos fatais. E isto não é tudo, ainda que seria muito em um mundo de
angústia como este; mas há um estímulo incomparável no que é relativo à paixão
do Senhor. Mesmo que tenham sido quase esmagados pelo quadro das agonias de seu
Senhor, saíram de lá fortes, decididos, fervorosos, consagrados.
Nada
comove mais as profundezas de nossos corações como a angústia de Seu coração.
Nada é demasiado difícil para que o tentemos ou o suportemos por Aquele que se
sacrificou a Si mesmo por nós. Ser vilipendiados pela amada causa de quem
sofreu tanta vergonha por nós, não se converte em uma grande aflição; incluso o
opróbrio, quando é suportado por Ele, se torna em maiores riquezas que todos os
tesouros do Egito. Sofrer por Ele no corpo e na mente, incluso até a morte é um
privilégio muito mais que uma exigência: tal amor inflama nossos corações de
tal forma, que ansiamos veementemente encontrar uma forma de expressar nosso
débito. Aflige-nos pensar que nossas melhores intenções sejam uma coisa muito
pequena; mas estamos solenemente decididos a não dar nada que não seja o melhor
de nós a Quem nos amou e se entregou por nós.
Eu
creio também que, frequentemente, muitos corações indiferentes foram
grandemente afetados pelos sofrimentos de Jesus: foram perturbados em sua
indiferença, convencidos da sua ingratidão, separados de seu amor pelo pecado,
e atraídos a Cristo ao escutar o que Ele suportou no seu lugar. Nenhum ímã pode
atrair aos corações humanos como a cruz de Cristo. Suas feridas ocasionam que
até corações de pedra sangrem. Sua afronta envergonha a própria obstinação. Os
homens não caem tão abundantemente frente ao grandioso arco de Deus, como
quando suas flechas são encharcadas com o sangue de Jesus. Esses dardos que
estão armados com Suas agonias, causam feridas que nunca podem ser curadas,
exceto por Suas próprias mãos traspassadas. Estas são as armas que matam o
pecado e salvam o pecador, eliminando de um só golpe tanto sua confiança em si
mesmo como seu desespero, convertendo-o em um cativo desse conquistador cuja
glória é tornar os homens livres.
Esta
manhã, não quero pregar somente as doutrinas que saem da cruz, mas sim a
cruz mesma. Eu suponho que essa foi uma das grandes diferenças entre a primeira
pregação de todas e a pregação depois da Reforma. Depois da Reforma ressoavam
claramente desde todos os púlpitos a doutrina da justificação pela fé e outras
gloriosas verdades, que eu espero que recebam mais e mais relevância; mas os
primeiros pais da igreja proclamaram as mesmas verdades de uma maneira menos
teológica. Se eles tratavam pouco sobre a justificação pela fé, pregavam com
maravilhosa profusão sobre o sangue e seu poder limpador, sobre as feridas e
sua eficácia curadora, sobre a morte de Jesus e nossa vida eterna. Nós
retomaremos seu estilo por uns momentos, e pregaremos os fatos sobre nosso
Senhor Jesus Cristo, em vez de falar sobre suas inferências doutrinárias. Oh,
que o Espírito Santo leve as aflições de nosso Senhor tão perto de cada
coração, que cada um de nós conheça a comunhão com Seus sofrimentos, e possua
fé em Sua salvação e um reverente amor pela Sua pessoa.
I. Começaremos nossa
narrativa esta manhã, pedindo-lhes primeiro, que pensem no INTERROGATÓRIO
PRELIMINAR DE NOSSO BENDITO SENHOR E MESTRE, REALIZADO PELO SUMO SACERDOTE.
Eles trouxeram a nosso Senhor desde os limites do jardim; e quando o trouxeram,
o sujeitavam firmemente, pois lemos: “os soldados do presidente, conduzindo
Jesus.” Evidentemente estavam temerosos do prisioneiro, mesmo quando o tinham
inteiramente em seu poder. Ele era toda benignidade e submissão; mas a
consciência acovardava a todos eles, e por isso tinham todo o cuidado que os
covardes empregam para mantê-lo entre suas garras. Como a corte não havia se
reunido em número suficiente para um interrogatório geral, o sumo sacerdote
decidiu que ocuparia o tempo interrogando pessoalmente a seu prisioneiro.
Principiou
seu maligno exercício. O sumo sacerdote perguntou a Jesus coisas sobre
Seus discípulos. Não podemos dizer quais foram as perguntas, mas eu
suponho que eram algo parecido com isto: “Como foi que te rodeaste de um grupo
de homens? Que faziam eles contigo? Que pensavas conseguir com eles? Quem eram
eles? Não eram um grupo de fanáticos, homens descontentes e prontos para a
sedição?” Eu não sei como o astuto Caifás faria suas perguntas; mas o Salvador
não deu resposta a esta indagação particular. Que poderia ter dito se houvesse
tentado responder? Ah, irmãos, que coisa boa teria dito de Seus discípulos?
Podemos ter certeza que Ele não diria nada de mau. Mas poderia ter dito: “no
que se refere a meus discípulos, um deles me traiu; ainda tem em sua mão o
dinheiro de sangue que vocês pagaram e ele por mim. Outro deles, ali no pátio,
antes que cante o galo, negará que me conheceu alguma vez, e agregará
juramentos e maldições em sua negação: quanto aos demais, todos me abandonaram
e fugiram.” Portanto, nosso Senhor não disse nada acerca de Seus discípulos,
pois não se converteria em acusador dos Seus, pois Ele não veio condená-los, e
sim, justificá-los.
O sumo
sacerdote também Lhe perguntou coisas sobre Sua doutrina. Eu suponho
que Lhe perguntaria: “que novo ensinamento é este? Por acaso nós não
somos capazes para ensinar ao povo: já que os escribas são tão entendidos na
lei, os fariseus são tão cuidadosos do ritual e os saduceus são tão filosóficos
e especulativos? Por que precisas te infiltrar neste domínio? Eu te considero
somente um pouco mais que o filho de um camponês: qual é esse estranho
ensinamento teu?” A esta indagação sim, nosso Senhor respondeu, e
que triunfante resposta deu! Oh, que sempre pudéssemos falar, quando
é conveniente falar, tão mansa e sabiamente como Ele! Ele lhe respondeu: “Eu
publicamente falei ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde se
reúnem todos os judeus, e nada falei em oculto. Por que perguntas a
mim? Pergunta aos que ouviram, o que foi que eu falei; aqui estão, eles sabem o
que eu disse.” Oh, irmãos, nenhuma réplica à calúnia pode comparar-se com uma
vida irrepreensível. Jesus tinha vivido no pleno resplendor do dia onde todos
podiam vê-lo, e, contudo, foi capaz de desafiar a acusação e dizer: “Pergunta
aos que escutaram.” Bem-aventurado é o homem que não tem necessidade de
defender-se porque suas obras e palavras são sólidos testemunhos de sua retidão
e bondade. Nosso Salvador respondeu ao Seu interrogador muito pacientemente, e,
contudo, muito eficazmente, apelando para os fatos. Ele se apresenta diante de
nós tanto como o espelho da mansidão como o paradigma da perfeição, e a calúnia
se retorce a Seus pés como uma serpente ferida. Que grande deleite é contar com
este triunfante intercessor como nosso advogado, que argumenta Sua própria
justiça em nossa defesa! Ninguém poderia impugnar Sua absoluta perfeição, e
essa perfeição cobre todos Seus santos neste dia.
Quem
nos acusará, agora que Cristo decidiu interceder por nós? Esta esmagadora
resposta, contudo, trouxe sobre o Salvador uma bofetada de um dos oficiais
do tribunal que estava ali. Este ato não foi sumamente repulsivo? Aqui nós
temos a primeira de uma nova categoria de agressões. Até este ponto não
havíamos nos inteirado de bofetadas e golpes; mas agora se cumpriu o que foi
dito: “ferirão com vara na face ao juiz de Israel.” Esta foi a primeira de
uma longa série de agressões. Eu me pergunto quem seria o homem que esbofeteou
o Senhor desta maneira. Eu desejaria que a réplica do Senhor para com ele
pudesse ter influenciado seu coração a ponto de arrepender-se; mas, se assim
não fosse, com certeza estava à frente da caravana de agressões pessoais
dirigidas contra a pessoa de nosso Senhor: sua mão ímpia foi a primeira a
golpeá-lo. Seguramente morreu na impenitência, a lembrança desse golpe
permanecerá como um verme que nunca morre dentro dele. Hoje grita: “eu fui o
primeiro a golpeá-lo: Eu golpeei Sua boca com a palma da minha mão.”
Os
escritores de antigamente que escreveram sobre a Paixão, nos dão diversos
detalhes das lesões infligidas contra o Salvador por esse golpe; mas nós não
lhe outorgamos nenhuma importância a tais tradições, portanto, não as
citaremos, mas diremos simplesmente que havia uma crença generalizada na igreja
que este golpe foi muito cruel, e causou muita dor ao Salvador. Contudo, ainda
que tenha sentido esse golpe, e talvez foi sacudido por ele, o Senhor não
perdeu Sua compostura, nem mostrou o menor ressentimento. Sua resposta foi tudo
o que deveria ser. Não há nenhuma palavra em demasia. Ele não diz: “Deus te
golpeará a ti, parede caiada!” como o apóstolo Paulo fez. Nós não censuraremos
o servo, mas louvaremos muito mais ao Senhor. Ele disse mansamente: “Se falei
mal, dá testemunho do mal; e, se bem, por que me feres?”
Isso
bastaria, com certeza, se houvesse ficado algum remanescente de benevolência no
coração do agressor, para fazê-lo mover sua mão até o seu peito movido por uma
dor penitencial. Nós não nos surpreenderíamos se tivesse clamado: “me perdoe,
oh Tu, que és divinamente manso e benevolente, e me permita desde este momento
ser Teu discípulo.” Desta maneira vimos a primeira parte dos sofrimentos de
nosso Senhor na casa do sumo sacerdote, e a lição dela é justamente esta:
sejamos mansos e humildes de coração como foi o Salvador, pois ali reside Sua
força e dignidade. Vocês me dirão que eu já disse isso antes. Sim, irmãos, e
terei que dizê-lo muitas vezes mais diante de vocês e aprendi bem a lição. É
difícil ser manso quando alguém é falsamente acusado, ser manso quando alguém é
duramente interrogado, ser manso quando um astuto adversário está à caça, ser
manso quando alguém se encolhe ao receber um golpe atroz que foi uma afronta
para uma corte de justiça. Vocês escutaram da paciência de Jó, mas aquela
paciência perde a cor diante da paciência de Jesus. Admirem Sua paciência, mas
não se contentem em admirar, imitem Seu exemplo, descrito abaixo deste
cabeçalho e sigam cada curso.
Oh
Espírito de Deus, ainda tendo Cristo como exemplo, não aprenderemos a mansidão
a menos que Tu nos ensines; e ainda tendo a Ti como um mestre, não a
aprenderemos a menos que tomemos Seu jugo sobre nós e aprendamos d'Ele; pois é
unicamente a Seus pés, e debaixo da Tua unção divina que nos tornaremos mansos
e humildes de coração, e acharemos descanso para nossas almas.
Por
tanto, o interrogatório preliminar foi concluído, e não foi finalizado em
absoluto como um êxito para o sumo sacerdote. Ele interrogou Jesus e o golpeou,
mas a provação não produz nada que possa contentar o adversário. O prisioneiro
é supremamente vitorioso, já que o agressor foi frustrado.
II. Agora vem uma segunda
cena, A BUSCA DE TESTEMUNHAS CONTRA ELE. “E os principias dos sacerdotes e todo
o concílio buscavam algum testemunho contra Jesus, para o matar, e não o
achavam.” É uma estranha corte a que se reúne com o desígnio de encontrar culpa
no prisioneiro, decididos, de uma forma ou outra a conseguir sua morte. Eles
devem proceder de acordo às normas da justiça, e assim substituem testemunhas,
ainda que todo o tempo violem o espírito da justiça, pois vasculham Jerusalém
para encontrar testemunhas que cometam perjúrio para acusar o Senhor. Cada
membro do concílio escrevia o nome de alguém que pudesse ser trazido de fora,
pois as pessoas tinham vindo de todas as partes da terra para guardar a Páscoa,
e com certeza alguns poderiam ser rastreados, em um lugar ou outro, que lhe
dissessem alguma coisa que pudesse ser acusável. Introduzem, portanto, a todo a
quem que possa encontrar dessa classe degradada que se aventure a cometer
perjúrio, se houvesse um suborno disponível. Eles vasculharam Jerusalém para
descobrir testemunhas contra Jesus; mas tinham muita dificuldade para ter êxito
em seu desígnio, porque estavam obrigados a examinar a testemunha à parte, e
não podiam fazer que concordassem. É difícil conseguir que as mentiras
concordem, mas em troca, as verdades são cortadas com o mesmo molde.
Além
disso, havia muitos tipos de testemunhas que podiam ser encontradas com
facilidade, mas não se atreviam a apresentá-los. Tinham muitas pessoas que
poderiam testemunhar que Jesus tinha falado contra a tradição dos anciãos; mas
quanto a isso, havia alguns no concílio, isto é, os saduceus, que estavam de
acordo com Ele em grande parte. Não tinha lógica apresentarem uma acusação
sobre a qual não tinham uma unanimidade consensual. Suas denúncias dos fariseus
não podiam ser apresentadas como acusação, pois estas estavam de acordo com os
saduceus; tampouco podiam alegar Seu clamor contra os saduceus, pois nisto, os
fariseus estavam de acordo com Ele.
Vocês
lembrarão como Paulo, quando foi apresentado diante desse Sinédrio, se
aproveitou dessa divisão de opinião e clamou: “Eu sou fariseu, filho de
fariseu; no tocante à esperança e ressurreição dos mortos, sou julgado”; e
desta maneira criou uma dissensão no conclave, que por um tempo trabalhou a seu
favor. Nosso Senhor se apossou de um terreno mais elevado e mais nobre, e não
se inclinou para converter a insensatez deles em algo que o beneficiaria;
contudo, estando eles conscientes de suas dissensões internas, evitaram cautelosamente
esses pontos sobre os quais não estavam em harmonia. Eles poderiam apresentar
sua antiga queixa de que o Senhor Jesus não observava o sábado à maneira deles;
mas, então, se tornaria mais público o fato de que havia curado enfermos no dia
de sábado. Não os ajudaria em nada publicar este fato, pois, quem pensaria em
matar uma pessoa por ter ela aberto os olhos a um cego de nascença, ou por ter
restaurado uma mão seca em um sábado? Esse tipo de testemunho foi, portanto,
descartado.
Mas,
não poderiam ter encontrado algumas testemunhas que jurassem que Ele havia
falado sobre um reino que estava estabelecendo? Não poderia isto, ter sido
imediatamente interpretado como uma incitação à sedição e rebelião? Sim, mas
essa era uma acusação que teria de ser submetida ao Tribunal Cível de Pilatos,
mas a Sua acusação era em um tribunal eclesiástico. Além disso, havia
herodianos no concílio que estavam muito inquietos debaixo do jugo romano, e
não poderiam ter a cara de condenar alguém por ser um patriota; e, ademais, o
povo que estava fora, teria simpatizado muito mais com Jesus se tivessem
suposto que Ele os guiaria em uma rebelião contra César. Portanto, eles não
podiam forçar esse ponto. Devem ter se sentido grandemente confundidos sem
saber o que fazer; especialmente quando incluso naqueles pontos os quais
decidiram apresentar às testemunhas, tão logo abriam suas bocas, se
contradiziam entre si.
Por
fim as tinham. Apareceram dois cuja evidência mais ou menos concordava; E estes
afirmaram que numa determinada ocasião, Jesus tinha dito: “Eu derrubarei este
templo, construído por mãos de homens, e em três dias edificarei outro, não
feito por mãos de homens.” Aqui havia uma blasfêmia contra a santa e bela casa
do Senhor, e isso bastaria. Agora, o Salvador tinha dito algo que era
semelhante ao testemunho destas falsas testemunhas, e um mal entendido tinha
feito tudo ainda mais semelhante; mais ainda assim, o que essas testemunhas
falaram era uma mentira, e não era menos mentira porque havia uma sombra de
verdade, pois o pior tipo de mentira é aquela produzida a partir de uma
verdade: causa um dano muito maior que se fosse uma falsidade de início ao fim.
O
Salvador não tinha dito: “Eu vou destruir este templo”; Ele disse: “Derribai
este templo,” ou seja, “Vocês o destruirão, e podem destruí-lo.” Ele não tinha
se referido ao templo de Jerusalém; Ele falou sobre o templo do Seu corpo que
seria destruído. Cristo nunca disse: “Destruí este templo feito a mão, e
edificarei outro feito sem mãos”: na Sua linguagem não há nenhuma alusão às
mãos em absoluto. Estes refinamentos procediam da própria invenção deles, e Sua
linguagem não tinha nenhum vínculo com a deles. Ele não tinha dito: “Eu
edificarei outro”; Ele havia dito: “o levantarei,” que é algo muito diferente.
Ele queria dizer que Seu corpo, depois de ser destruído, seria outra vez
levantado no terceiro dia. Eles tinham alterado uma palavra aqui e outra acolá,
o modo de um verbo e a forma de outro, e assim colocaram palavras na boca de
Jesus, que Ele nunca havia pensado. Contudo, inclusive na acusação, não
concordavam. Um disse uma coisa a respeito, e outro disse outra, de tal forma
que inclusive esta vil acusação não podia ser utilizada contra o Salvador. Sua
falsidade remendada estava feita de um material tão podre que as peças não se
sustentariam juntas. Eles estavam prontos a jurar qualquer coisa que viesse à
suas mentes que cometiam perjúrio, mas não se podia conseguir que dois deles
jurassem pelo mesmo testemunho.
No
entanto o Senhor permanece calado; como ovelha diante de Seus
tosquiadores, emudeceu, e não abriu Sua boca; e eu suponho que a razão foi em
parte para cumprir a profecia, e, em parte, porque a grandiosidade de Sua alma
não poderia rebaixar-se a contender com mentirosos, e sobre tudo, porque Sua
inocência não necessitava nenhuma defesa. O que é culpado em alguma medida,
está ávido por desculpar-se e arranjar as coisas: suas desculpas sugerem
usualmente aos homens experientes a crença de que poderia haver alguma base
para a acusação. O que é perfeitamente inocente não tem nenhuma pressa para
responder aos seus caluniadores, pois logo eles se respondem entre si. Nosso
Senhor não desejava entrar em uma pendência com eles, para não provocá-los a
expressar mais falsidades. Se as palavras não podem ajudar, então, na verdade,
o silêncio é sábio: quando o único resultado havia sido provocar Seus inimigos
a incrementar suas iniquidades, foi uma compaixão magnânima a que conduziu o
caluniado Salvador a não dizer nada.
Não
devemos deixar de advertir o consolo que em alguma medida havia sido
ministrado a Nosso Senhor pela acusação que foi apresentada como a melhor. Ele
está ali, e sabe que estão a ponto de sentenciá-lo à morte, mas eles mesmos O
lembram que o poder deles sobre Ele tem um contrato de arrendamento não maior
de três dias, e ao final desse curto período, Ele será levantado de novo, e já
não estará mais à sua disposição. Seus inimigos lhe deram testemunho da
ressurreição. Não digo que Sua memória fosse fraca, ou que possivelmente
tivesse esquecido em meio às Suas aflições, mas, contudo, nosso Senhor era
humano, e algumas formas de consolo que são valiosos para nós, eram úteis para
Ele.
Quando
a mente é torturada com uma falsidade maliciosa, e o homem inteiro é sacudido
por dores e aflições, é bom que nos lembrem das consolações de Deus. Lemos
sobre alguns que foram “atormentados, não aceitando o resgate,” e foi a
esperança da ressurreição o que os sustentou. Nosso Senhor sabia que Sua alma
não seria deixada nas moradas da morte, e que Sua carne não veria corrupção, e
as falsas testemunhas trouxeram isto vividamente diante de Sua mente. Agora, na
verdade, nosso Redentor podia dizer: “Derribai este templo, e em três dias o
levantarei.” Estes corvos trouxeram ao Salvador pão e carne. Nestes leões
mortos nosso glorioso Sansão encontrou mel. Sustentado pelo gozo colocado
diante Dele, despreza a vergonha. Estranho é que das bocas daqueles que
buscavam Seu sangue, veio o memorial de uma de Suas maiores glórias.
Agora,
irmãos, até aqui aprendemos outra vez a mesma lição, ou seja, cresçamos em
mansidão, e a demonstremos guardando silêncio. A eloquência é difícil de
adquirir, mas o silêncio é muito mais difícil de praticar. Um homem pode
aprender mais rápido a falar bem que a não falar de tudo. Temos tanta pressa
por reivindicar nossa própria causa que a estragamos com uma linguagem
irrefletida: se fôssemos calmos, benevolentes, tranquilos, pacientes como foi o
Salvador, nosso caminho para a vitória seria muito mais fácil.
Observem,
ademais, a armadura que cobria Cristo: vejam o escudo invulnerável de Sua
santidade. Sua vida era tal que a calúnia não podia armar uma acusação contra
Ele que durasse o suficiente para poder ser repetida. As acusações eram tão
frágeis, que, como borbulhas, se desvaneciam tão rapidamente como viam a luz.
Os inimigos de nosso Senhor estavam totalmente desconcertados. Eles lançavam
seus dardos contra Ele, e como se caíssem sobre um escudo de ardente diamante,
cada flecha era quebrada e consumida.
Aprendamos
também esta outra lição: que seremos distorcidos. Podemos contar que, para
ouvidos hostis, nossas palavras terão outros significados que aquele que nos
propúnhamos dar; podemos esperar que quando ensinamos uma coisa que é
verdadeira, eles inventarão que expressamos outra coisa que é falsa; mas não
devemos temer esta prova de fogo como se fosse algo estranho. Nosso Senhor e
Mestre a suportou e os servos não escaparão dela. Portanto, suportem a aspereza
como bons soldados de Jesus Cristo, e não tenham medo. No meio do estrépito
destas mentiras e perjúrios, escuto o assobio pacífico e delicado de uma
verdade sumamente preciosa, pois a semelhança de quando Jesus esteve diante do
tribunal por nós, e eles não podiam confirmar alguma acusação sobre Ele, assim
será quando estejamos Nele no último grande dia, lavados em Seu sangue e
cobertos com Sua justiça, nós também seremos absolvidos. “Quem acusará os
eleitos de Deus?” Se Satanás se apresentasse como o acusador dos irmãos, seria
recebido pela voz: “O Senhor te repreenda, oh Satanás; sim, o Senhor que
escolheu Jerusalém, te repreenda. Não é este um tição tirado do fogo?” Sim,
amados, nós também seremos absolvidos da calúnia.
Então
os justos resplandecerão como o sol no reino de seu Pai. A gloriosa justiça
Daquele, que foi falsamente acusado, livrará os santos e toda iniquidade
fechará sua boca.
III. Mas
não devo demorar-me demasiado em temas como estes, e, portanto, prossigo
AO INTERROGATÓRIO PESSOAL que se seguiu ao fracasso de querer apresentar
testemunhas. O sumo sacerdote, demasiadamente indignado para ficar sentado, se
põe de pé e se inclina sobre o prisioneiro como um leão rugindo sobre sua
presa, e começa a interrogá-lo de novo. Estava fazendo algo injusto. Por acaso
o juiz que tem por ofício administrar a lei, se daria ao trabalho de demonstrar
a culpabilidade do prisioneiro, ou, o que é pior, trataria de extrair uma
confissão do acusado que pudesse ser usada contra ele? Isto implicava uma
confissão tácita de que se tinha demonstrado a inocência de Cristo até esse
momento. O sumo sacerdote não teria necessidade de tirar algo do acusado se
houvesse tido material suficiente contra ele por outro lado. O julgamento havia
sido um completo fracasso até esse ponto, e ele o sabia, e estava roxo de
raiva. Agora ele tenta intimidar o prisioneiro, para poder arrancar-lhe alguma
declaração que pudesse resolver qualquer problema de conseguir testemunhas, e
assim liquidar o assunto.
A
pergunta foi formulada com uma solene intimação, e alcançou seu propósito, pois
o Senhor Jesus de fato falou, ainda que soubesse que com isso estava
proporcionando uma arma contra Si. Ele se sentiu obrigado a responder ao sumo
sacerdote de Seu povo quando usou tal encantamento, apesar de que esse sumo
sacerdote era um homem mau; e não podia escapar de uma acusação tão solene para
que não parecesse que por Seu silêncio estava negando a verdade sobre a qual
está assentada a salvação do mundo.
Assim
que, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: “És tu o Cristo, filho do Deus
Bendito?”, quão clara e franca foi a resposta do Senhor. Ainda que Ele sabia
que isto acarretaria a Sua morte, deu testemunho de uma boa confissão. Ele
claramente disse: “Eu o sou,” e logo acrescentou à essa declaração: “e vereis o
Filho do Homem”—e desta maneira expõe Sua humanidade bem como Sua
deidade—“assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu.”
Que fé
tão majestosa! É maravilhoso pensar que estivesse tão calmo como para
confrontar aos que zombavam Dele, e reivindicar Sua glória quando se encontrava
sumido nas profundezas da vergonha. Foi como se dissesse: “vocês estão servindo
como meus juízes, mas logo Eu estarei julgando-os: pareço a vocês um
insignificante camponês, mas Eu sou o Filho do Deus Bendito; vocês creem que me
esmagarão, mas nunca o farão; pois logo me sentarei à destra do poder de Deus,
e virei nas nuvens do céu.” Ele falou com audácia, como era apropriado. Eu
admiro a mansidão que podia estar calada, e admiro a mansidão que podia falar
suavemente, mas admiro muito mais a mansidão que podia falar com valentia, mas
que continuava sendo mansa.
De uma
maneira ou outra, quando nós respondemos com valentia, deixamos a dureza entrar
pela mesma porta, ou se deixamos de fora nossa ira, somos propensos a esquecer
nossa firmeza. Jesus nunca elimina uma virtude para dar espaço à outra. Seu
caráter é completo, íntegro, perfeito, de qualquer maneira em que O vejamos. E
seguramente, irmãos, isto deve ter trago outro doce consolo para o coração de
nosso divino Mestre. Enquanto se encolhia debaixo desse duro golpe, enquanto se
retorcia sob essas imundas acusações, enquanto suportava tal contradição de
pecadores contra Ele, deve ter se sentido internamente satisfeito na
consciência de Sua condição de Filho e Seu poder, e diante da perspectiva de
Sua glória e triunfo. Um manancial de água brota de dentro de Sua alma por
saber antecipadamente que se sentará à destra de Deus, e que julgará os vivos e
os mortos, e que reivindicará os Seus redimidos.
É
sábio ter estes consolos sempre à mão. O inimigo poderia não ver Seu poder
consolador, mas nós sim o vemos. Para nós, de debaixo do altar procede um rio
cujo suave fluir provê uma tranquila alegria a nossos espíritos. Alegria essa
que as águas terrenas não podem competir. Mesmo agora ainda ouvimos o que o Pai
diz: “Eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão.” Notem, antes que
deixemos este ponto, que, praticamente, o julgamento e o interrogatório
terminaram com a condenação de nosso Senhor, devido a ter confessado
Sua deidade. Eles disseram: “Vós ouvistes a blasfêmia; que vos parece? E
todos o consideraram culpado de morte.”
Eu não
posso entender totalmente essas pessoas que se chamam ‘unitarianos’ e negam a
deidade de nosso Senhor. Nós também somos unitarianos, pois cremos em um Deus,
e em um único Deus; mas eles nos dizem que este Cristo bendito, nosso Senhor,
não é Deus, e, contudo, reconhecem que Ele foi o mais excelente dos homens, o
mais perfeito dos seres humanos. Eu não posso vê-lo assim. Eu pensaria
que é um blasfemador, e nada mais, se não fosse Deus; e os judeus,
evidentemente, sustentavam essa opinião, e o tratavam de acordo com isso. Se
Ele não tivesse dito que Deus era Seu Pai, eles não estariam tão zangados com
Ele. Eles o condenaram à morte devido à afirmação de Sua deidade, e a
declaração de que se sentaria à destra do Poder e julgaria o mundo.
Hoje
em dia, multidões estão dispostas a aceitar Cristo como um mestre, mas não o
aceitarão como o Filho de Deus. Eu não tenho dúvidas de que a religião cristã
poderia ser recebida em muitos lugares se a sua força fosse tosquiada, se, de
fato, sua própria alma e suas entranhas fossem arrancadas, ao proclamar Jesus
como um dos profetas e nada mais. Vejam como nossos sábios falam Dele como
alguém de uma linha de grandes reformadores, assim como Moisés, Samuel, Elias,
e com frequência adicionam a Confúcio e a Maomé. Nós abrimos espaço para isto?
Não, nem por um instante. Ele verdadeiramente é o Filho do Deus Bendito. Ele é
divino. A acusação de blasfêmia deveria ser lançada contra Ele, se não fosse o
Filho do Altíssimo.
IV. Agora devemos
continuar e nos fixar por um segundo ou dois no tema da CONDENAÇÃO. O
condenaram por Sua própria boca: mas isto, ainda que tivesse uma aparência de
justiça, era realmente injusto. Diante do tribunal, o prisioneiro afirmou que
Ele é o Filho de Deus. Qual é o problema? Por acaso não pode estar dizendo a
verdade? Se for verdade, Ele não deve ser condenado e sim, adorado. A justiça
requer que se faça um interrogatório para verificar se é o Cristo, o Filho do
Bendito, ou não. Ele reclamou ser o Messias. Muito bem, todos os que estão na
corte, estão esperando o Messias; alguns deles esperam que apareça logo. Não
poderia ser este o enviado do Senhor? Que se faça um interrogatório de seus
argumentos. Qual é sua linhagem? Onde nasceu? Algum dos profetas o
confirmou? Fez milagres? Algumas dessas perguntas são devidas a
qualquer homem cuja vida esteja em jogo.
Não
podem condenar à morte justamente a um homem sem um exame que se adentre na
verdade de sua defesa, pois poderia resultar que seus pronunciamentos fossem
corretos. Mas não, eles não querem escutar ao homem que odeiam, e sua mera
afirmação o condena; é blasfêmia, e deve morrer. Ele afirma ser o Filho de
Deus. Vamos, então, Caifás e o concílio, convoquem testemunhas para a defesa.
Perguntem se olhos cegos foram abertos, e se os mortos foram ressuscitados.
Perguntem se Ele fez milagres tais como ninguém jamais fez no meio de Israel ao
longo de todos os tempos. Por que não fazer isto? Oh, não, pela prisão e
julgamento Ele será tirado, e Sua geração, quem a contará? Quanto mais curto o
interrogatório, mais fácil será condená-lo injustamente. Ele disse que é o
Cristo e o Filho de Deus, portanto, é digno de morte.
Ai,
quantos há que condenam a doutrina de Cristo sem fazer as devidas investigações
sobre ela; e a condenam pelos argumentos mais triviais. Vêm para escutar um
sermão, e talvez encontram falhas nos gestos do pregador, como se isso
bastasse para negar a verdade que ele prega; ou talvez digam “isto é muito
estranho; não podemos crer.” Por que não? Por acaso as coisas estranhas não são
verdadeiras algumas vezes, e não são muitas verdades demasiado estranhas até
que se familiarize com elas? Estes homens não querem condescender a ouvir a
demonstração da confirmação de Cristo: não querem fazer nenhuma pergunta. E
assim, como os sacerdotes judeus, praticamente gritam: “Morra! Morra!”
Ele é
condenado à morte, e o sumo sacerdote rasga sua roupa. Eu não sei se ele usava
naquele momento as roupas com as quais ministrava, mas sem dúvida levava algum
traje peculiar de seu ofício sacerdotal, e este é o que rasgou. Oh, quão
significativo foi isso! A casa de Aarão e a tribo de Levi rasgaram suas vestes,
e o templo, em algumas horas, rasgou seu véu de cima abaixo: pois os sacerdotes
e o templo foram igualmente abolidos. Eles desconheciam isso, mas tudo o que
faziam tinha um significado singular: essas vestes rasgadas eram um índice do
fato que agora o sacerdócio Aarônico havia sido rasgado para sempre, e o
grandioso sacerdócio de Melquisedeque havia entrado, pois o verdadeiro
Melquisedeque, nesse instante e nesse lugar, estava diante deles em toda a
majestade de Sua paciência.
Observem
que todos concordavam; não havia dissidentes; eles tinham tomado o cuidado, não
tenho dúvidas, de não deixar que Nicodemos e José de Arimatéia soubessem algo
sobre esta reunião. A convocaram durante a noite, e somente a ensaiaram muito
cedo pela manhã, com o objetivo de guardar sua antiga lei rabínica que
estabelecia que deviam julgar os prisioneiros quando houvesse a luz do dia.
Eles apressaram o julgamento, e qualquer que pudesse falar contra a sentença
sedenta de sangue, foi mantido fora do caminho.
A
assembleia foi unânime. Ai da unanimidade dos corações ímpios contra Cristo! É
surpreendente que haja tais discussões entre os amigos de Cristo, e tal unidade
entre Seus inimigos, quando o ponto é sentenciá-lo à morte. Eu nunca ouvi de
discussões entre os demônios, e também nunca li de divisões no inferno: todos
eles são um no seu ódio contra Cristo e contra Deus. Mas aqui estamos divididos
em seções e partidos, e com frequência, estamos em guerra uns com os outros. Oh
Senhor de amor, nos perdoa: Rei da harmonia, vem e reina sobre nós, e nos
conduz a uma perfeita unidade a Teu redor.
A
sentença foi: “morte.” Não digo nada dela exceto isto: a morte era a sentença
que eu merecia, a sentença que vocês mereciam, e eles a
impuseram sobre nosso Substituto. “Digno de morte”—disseram—todos eles. Todas
as mãos foram levantadas; todas as vozes disseram: “Sim, sim” ao veredicto.
Contudo, não havia delito Nele. Antes, digamos que toda excelência era
encontrada Nele. Quando ouço que Jesus é condenado a morrer, minha alma cai a
Seus pés e clama: “Bendito Senhor, agora assumiste minha condenação; não há,
portanto, nenhuma condenação para mim. Agora tomaste meu cálice de morte para
sorvê-lo, e a partir deste momento, está seco para mim. Glória seja dada a Teu
bendito nome, desde agora e para sempre.”
V. Quase sinto prazer
que o tempo tenha corrido tanto, pois devo necessariamente colocar diante de
vocês a quinta e mais dolorosa cena. Assim que estes malvados homens do
Sinédrio O declaram culpado de morte, os servos, os guardas, e aqueles que
custodiavam o salão onde se encontravam os principais sacerdotes, ávidos de
agradar a seus senhores, e todos eles tocados pelo mesmo espírito brutal que
morava neles, imediatamente começaram a ultrajar a infinita majestade de nosso
Senhor.
Considerem
O ULTRAJE. Permitam-me ler as palavras: “E alguns começaram a cuspir nele.”
“Começaram a cuspir NELE!” Assim expressaram mais contundentemente o menosprezo
que por meio de palavras. Fiquem atordoados, ó céus, e sintam um medo horrível.
Sua face é a luz do universo, Sua pessoa é a glória do céu, e eles “começaram a
cuspir nele!” Ai, meu Deus, que o homem seja tão vil! Alguns foram mais longe,
e “começaram…a cobrir-lhe o rosto.”
É um
costume oriental cobrir o rosto dos condenados, como se não fossem aptos a ver
a luz, nem aptos para contemplar seus semelhantes. Eu não sei se foi por esta
razão, ou como simples chacota, que cobriram Seu rosto para que não pudessem
vê-lo, e para que Ele não pudesse vê-los. Como podiam desta maneira apagar o
sol e tapar a bem-aventurança? Logo, quando tudo era escuridão para Ele,
começaram a dizer: “Profetiza-nos Cristo, quem é o que te bateu?” Então outro
fez o mesmo, e muitos foram as cruéis bofetadas que aplicaram a Seu bendito
rosto.
Os
escritores medievais se deleitavam em falar sobre os dentes que foram
quebrados, das feridas em sua face, do sangue que escorria, da carne que foi
golpeada e ferida; mas nós não nos atrevemos a imaginar isto. A Escritura se
espalhou como um véu, e deixemos que fique aí. Contudo, deve ter sido um
horrível espetáculo ver o Senhor da glória com Seu rosto todo manchado com a
maldita saliva deles e ferido por seus punhos cruéis. Aqui o insulto e a
crueldade tinham se combinado: o ridículo de Seus títulos proféticos e a
desonra de Sua divina pessoa. Nada foi considerado suficientemente mau.
Inventaram toda a vergonha e o escárnio que puderam, e Ele permaneceu ali,
paciente, ainda que um só piscar de Seus olhos os teria consumido a todos em um
átimo.
Irmãos,
irmãs, isto é o que o nosso pecado merecia. Algo vergonhoso és tu, ó pecado! Tu
mereces que te cuspam! Isto é o que o pecado está fazendo constantemente a
Cristo. Sempre que vocês e eu pecamos, por assim dizer, cuspimos em Seu rosto:
também tapamos Seus olhos tratando de esquecer que Ele nos vê; e também o
golpeamos sempre que transgredimos e afligimos Seu Espírito. Não falemos dos
cruéis judeus: pensemos em nós, e seremos humilhados por esse pensamento. Isto
é o que o mundo ímpio está fazendo constantemente a nosso bendito Senhor. Eles
também pretendem tapar Seus olhos que são a luz do mundo: eles também desprezam
Seu Evangelho, e O cospem como algo totalmente desgastado e sem valor: eles
também desprezam aos membros de Seu corpo através de Seus pobres santos
afligidos que têm de aguentar calúnias e ultrajes por Sua amada causa.
E,
contudo, por sobre tudo isto, me parece ver uma luz sumamente bendita. Cristo
deve ser cuspido, pois Ele tomou nosso pecado: Cristo deve ser torturado, pois
Ele está ocupando nosso lugar. Quem haverá de ser o carrasco de toda esta dor?
Quem assumirá a tarefa de envergonhar a Cristo? Nossa redenção foi trabalhada
desta maneira, mas quem será o escravo que executará esse miserável trabalho?
Joguem os cachos mais bonitos das uvas de Escol; os joguem, mas quem os pisará
e extrairá laboriosamente o vinho, o generoso suco que agrada a Deus e ao
homem? Os pés serão os pés dispostos dos próprios inimigos de Cristo: eles
extrairão Dele o que nos redimirá e destruirá todo o mal. Eu me regozijo de ver
Satanás vencido na sua astúcia, e sua malícia convertida no instrumento de seu
próprio transtorno. Ele pensa destruir a Cristo, e mediante esse ato, se
destrói a si mesmo. Ele atrai o mal sobre sua própria cabeça e cai no buraco
que cavou. Assim, todo mal trabalhará sempre para o bem do povo do Senhor; sim,
seu maior bem muito frequentemente procederá daqueles que ameaçavam com sua
ruína, e que os provocavam à maior angústia.
Três
dias há de sofrer o Cristo e morrer e permanecer no sepulcro; mas depois disso,
Ele deve pisar a cabeça da serpente e levar cativo o cativeiro, e isso, através
do próprio sofrimento e vergonha que Ele agora está suportando; de igual
maneira ocorrerá a Seu corpo místico, e Satanás será pisado debaixo de nossos
pés dentro em pouco.
Deixo
este tema, esperando que vocês o continuem em suas meditações. Aqui há três
observações. A primeira é: quão prontos estamos a suportar a calúnia e o
ridículo pela causa de Jesus. Não te encolerizes, nem penses que seja algo duro
e que estamos debochando de ti. Quem és tu, querido amigo? Quem és tu? Quem
poderia passar a ser quando comparado a Cristo? Se cuspiram Nele, por que não
cuspiriam em ti? Se o esbofetearam, por que não te esbofeteariam a ti? Por
acaso o Senhor terá de suportar toda a dureza? Ele terá de ter toda a amargura,
e tu toda a doçura? Belo soldado és tu, que desejas uma melhor sorte que teu
Capitão!
Continuando, quão
sinceramente devemos honrar ao nosso amado Senhor. Se os homens estavam tão
ávidos por envergonhá-lo, nós devemos estar dez vezes mais empenhados em
dar-lhe glória. Há algo que poderíamos fazer hoje, pelo meio do qual Ele
pudesse ser honrado? Executemos. Podemos fazer algum sacrifício? Podemos
realizar alguma tarefa difícil que O glorifique? Não devemos deliberar, mas sim
fazer esta tarefa de imediato com toda nossa força. Temos de ser criativos na
forma de glorificar ao Senhor, assim como Seus algozes foram engenhosos nos
métodos para O envergonhar.
Finalmente,
quão seguramente e quão docemente podem, todos os creem Nele, vir e
descansar suas almas em Suas mãos. Certamente eu sei que quem sofreu isto,
posto que era verdadeiramente o Filho do Bendito, tem a capacidade de nos
salvar. Tais aflições hão de ser uma plena expiação por nossas transgressões. Glória
seja dada a Deus, porque essa saliva em Seu rosto significa um rosto limpo e
resplandecente para mim. Essas falsas acusações contra Seu caráter significam
que não há condenação para mim. Essa sentença de morte para Ele, demonstra a
certeza do nosso texto que vimos no domingo passado pela manhã:
“Na
verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem vida eterna.”
Descansemos docemente em Jesus, e se nossa fé se vê agitada em algum momento,
vamos à sala da casa de Caifás, e vejamos ao Justo estando no lugar dos
injustos, ao Imaculado suportando a condenação pelos pecadores. Julguemos e
condenemos cada pecado e cada dúvida na sala do sumo sacerdote, e saiamos
gloriando-nos porque o Cristo venceu por nós, e agora esperamos Sua aparição
com deleite. Que Deus os abençoe, irmãos, por Cristo nosso Senhor. Amém.
Autorização
e permissão deste para o português para o Projeto Spurgeon,
Todo direito de tradução protegido
por lei internacional de domínio público
Sermão nº 1643—Volume 28 do Metropolitan
Tabernacle Pulpit