Origem e conceito do
termo “Igreja”
No Novo Testamento, o conceito mais
importante aplicado às primeiras comunidades cristãs provém da palavra grega ekklesía.
Ele foi utilizado para designar desde as comunidades domésticas individuais até
a totalidade dos crentes em Cristo. O significado etimológico da palavra deriva
de ek-kaleo e significa “chamados para fora”. O termo vem do
vocabulário secular e designa assembléia política dos cidadãos no mundo antigo.
Na obra História Social do
Protocristianismo, Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann apontam para os
dois aspectos mais comuns do termo, tanto no uso secular, quanto no uso
neotestamentário: como reunião efetiva e como comunidade.
Desta forma, o termo serve para designar tanto as reuniões dos cristãos, quanto
a totalidade da Igreja.
O termo foi utilizado tanto no contexto
do Antigo Testamento, na tradução para o grego conhecida como Septuaginta
(LXX), como no Novo Testamento. Neste sentido, o cristianismo assumiu uma
conexão genealógica com o Antigo Testamento. Karl Ludwig Schmidt afirma a
importância desse fato: “A
‘igreja’ do NT continuou a ser designada com o mesmo vocábulo do VT, assim como
Deus continua a ser chamado kyrios”. Ainda
segundo K. L. Schmidt, o uso provável do termo no cristianismo primitivo deve
ser atribuído aos judeu-cristãos de fala grega, oriundos da sinagoga
helenística.
Deve-se perguntar, então, se os
primeiros cristãos enxergavam-se apenas como uma seita dentro do judaísmo. Esta
questão é crucial para entender o ministério da igreja a partir da sua própria
auto-compreensão, visto que ela vai determinar a sua ação em relação a si
mesma, em suas inúmeras funções, e ao mundo que a cerca, em todas as suas
relações. K. L. Schmidt afirmou: “Na realidade o judaísmo oficial
freqüentemente tratou como tal a primeira comunidade cristã. Esta, porém, se
sentia como uma sinagoga com pretensões à exclusividade, isto é, de representar
o verdadeiro judaísmo, o verdadeiro Israel.”. Werner Georg Kümmel corrobora
com esta visão afirmando que:
“Não há na comunidade primitiva, nem no próprio
Jesus, o pensamento conhecido dos profetas e que tanto os fariseus como o povo
de Qumrã reivindicaram para si, a saber, que o seu grupo era o santo “resto” do
povo de Deus, preservado por Deus para o fim dos tempos. Jesus, pelo contrário,
falara da “Nova Aliança” que Deus estabelecera por meio de sua morte.”
Assim, Kümmel conclui que: “Logo
a comunidade primitiva estava convicta de que, através de Cristo, Deus iniciara
em seu meio a nova aliança salvífica escatológica, a qual haveria de abranger
todo o povo”. Apontando, ainda, para a utilização do termoekklesíaacompanhado
do genitivo “de Jesus” ou “de Cristo” pelos primeiros cristãos como outro fator
que confirma esta tese: “Na mesma direção indica um segundo fato, a
saber, que a comunidade primitiva se chamou de ‘comunidade’ (ou também ‘Igreja)
de Jesus’ ou ‘comunidade do Cristo’.”
Sendo assim, fica claro que a
auto-compreensão da comunidade cristã primitiva fundamentava-se sobre a certeza
de que ela era a comunidade do Messias ressurreto, através de quem Deus iniciou
a sua salvação escatológica e em quem a consumação do Reino de Deus é
aguardada. A Igreja é, portanto, a nova comunidade de Deus. Leonhard Goppelt
conclui: “Todos os que confessam Jesus como o Cristo, e somente eles,
[...] constituem a comunidade escatológica da salvação”.
A função da Igreja
como nova comunidade de Deus
O conceito do termo ekklesía no
Novo Testamento aponta para a auto-compreensão da comunidade cristã primitiva
como a nova comunidade de Deus. Esta realidade demanda uma outra questão: qual
é, então, a função desta nova comunidade?
Segundo Joachim Jeremias, o novo povo
de Deus é uma comunidade de fé: “A proclamação de Jesus visa sempre o
apelo pessoal. [...] A resposta a esse apelo é a fé”.
Desta forma, a fé em Jesus é o
elemento constitutivo dessa nova comunidade e, meia do que isso, a proclamação
dessa fé é o instrumento pelo qual a comunidade se expressa e realiza-se neste
mundo. O grupo dos discípulos é formado em círculos concêntricos que partem do “núcleo
central que é constituído pelos doze mensageiros, que Jesus envia. Assim, nasce
em meio a esse mundo a comunidade dos que pertencem ao reinado de Deus”, afirma
J. Jeremias. A identidade desse povo é, pois, moldada a partir de seu caráter
essencialmente proclamador e que descende de seu grupo central de doze
discípulos que têm como missão fundamental a proclamação dessa fé.
Além disso, outra característica da
nova comunidade de Deus é a sua filiação a Ele. Segundo J. Jeremias:
Sempre
que as pessoas são convencidas pela boa-nova e aderem ao novo povo de Deus,
passam do mundo da morte para o mundo da vida (Mt 8.22 par. Lc 9.60; Jo 5.24
cf. Lc 15.24,32). Passam, então, a fazer parte do reinado de Deus. Uma nova
vida começa. Ela consiste em um novo relacionamento com Deus e com as pessoas.
A organização das
primeiras comunidades cristãs
A composição e organização das
comunidades neotestamentárias variaram de acordo com a época e com a localidade
em que estava implantada. De acordo com Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang
Stegemann, as comunidades da Judéia podem ser divididas em três grupos:
“1. O ‘movimento de Jesus’ propriamente dito, isto
é, o grupo ligado a Jesus em seu tempo de vida, para cujos membros geralmente
se emprega, nos evangelhos, o conceito de “discípulo” (mathetés), o que, todavia,
é errôneo, pois também era composto por mulheres. 2. ‘A protocomunidade de
Jerusalém’ surgida após a morte de Jesus ou as “comunidades de Deus na Judéia”
– como Paulo designa (Gl 1.22; 1Ts 2.14), distinguindo-as expressamente das
“comunidades dos povos” (Rm 16.4). 3. As ‘comunidades messiânicas’, no período
após o ano 70, da forma como estão representadas, em nossa opinião, nos
Evangelhos de Mateus e João.”
Além desses grupos, eles identificam
um outro grupo de comunidades do protocristianismo, é o das comunidades
crentes em Cristo, estabelecidas nas diferentes cidades do Império Romano,
especialmente entre os judeus da diáspora. Estas comunidades receberam grande
influência de Paulo.
Nas comunidades de Deus na
Judéia, a organização era marcadamente carismática. Gerd Theissen
identifica os primeiros pregadores cristãos com o carismatismo
itinerante, uma expressão agrária de pregadores carismáticos cujo
ministério era voltado a curas e à pregação escatológica. O carismatismo
itinerante era conhecido na Antigüidade e reconhecido na Didaquê,
documento do final do primeiro século, e tem paralelo na prática dos filósofos
cínicos.
Theissen lança luz sobre o
comportamento dos transmissores e seus condicionamentos, afirmando as questões
temporais estão ainda mais presentes nesta abordagem, pois leva em consideração
fatores sócio-econômicos, como o trabalho dos carismáticos itinerantes que
possuía duas faces: curas e pregação escatológica, entendendo-os como
socialmente marginais e concluindo, portanto, que eles encontravam acolhimento entre
as pessoas que, como eles, encontravam-se à margem da sociedade.
Segundo Stegemann, este carismatismo
itineranteque sucedeu à morte de Jesus, especialmente no grupo mais
estreito de seus discípulos e discípulas, passou por três fases. A primeira era
a do carisma genuíno dos primeiros discípulos que partilharam
das visões de Jesus ressurreto. A segunda foi a da “despersonalização”
do carisma, onde as visões passam a um número cada vez maior de adeptos,
que visa o alcance de um número cada vez maior de pessoas em Israel. A terceira
foi a da institucionalização do carisma, onde aekklesía, a
comunhão dos santos, era entendida como o núcleo dotado do Espírito, a
assembléia escatológica do povo de Deus.
Além disso, Theissen afirma que
seguir a Jesus, em princípio, era uma atitude concreta que se pode abordar sob
dois aspectos: o religioso, como um encontro com o sagrado, e o sociológico,
como uma variante do desarraigamento social apontando para uma crise daquela
sociedade. A amplitude do fenômeno aponta para, nas histórias de vocação,
palavras de seguimento e ordenações missionárias, que os carismáticos
itinerantes não se limitam aos doze e nem aos apóstolos, mas abrange todos os
discípulos (Mt 8.21; 10.42), profetas (Mt 10.41), justo (Mt 10.41) e mestres
(At 13.1). Lucas informa que o grupo de carismáticos itinerantes não se limita
aos doze ao informar do envio dos setenta (Lc 10.15) com as mesmas ordens dos
doze (Lc 9.10ss). Indica também um grupo de profetas que imigram da Palestina
para a Antioquia (At 11.27s), além de Ágabo (At 21.10). Os carismáticos andam
em círculos de colaboradores (At 8.4; 19.19ss; 6.5; 8.1ss; 4.36; 22.3) e um
grupo destes itinerantes era adversário de Paulo (2 Co 11.22).
O carismatismo itinerante era
um fenômeno amplo no cristianismo primitivo. O condicionamento social do
desarraigamento no movimento de Jesus envolve uma existência apátrida motivada
religiosamente pelo discurso dirigido aos discípulos e aos cansados e
sobrecarregados (Mt 1.17; 11.28). É ligado ao mundo agrário, às camadas mais
baixas e às camadas não tão baixas (camponeses e pescadores).
Nas comunidades paulinas fora da
Judéia, inicialmente, aparecem algumas funções de liderança, mas incipientes.
Não se deve pensar em “cargos”, mas em “papéis”, como era comum nos grupos
carismáticos antigos. Entretanto, mais tarde, pode-se perceber essa situação se
modificou. Nas cartas pastorais, a ekklesía é chamada de “casa
de Deus” (1Tm 3.15) e seu “líder” ou “supervisor” (epískopos) deve
presidir a economia (oikonómos) doméstica divina, tendo demonstrado
competência na sua própria casa. Além deles há uma série de exortações quanto
aos papéis internos da casa.
Assim, analisando a atitude paulina
em relação àscomunidades neotestamentárias na
relação entre “Os fortes e os fracos em Corinto”, G. Theissen concorda que é
certo que fatores sócio-culturais tenham influenciado nesta questão, mas prefere
procurar por outros fatores ao invés de identificar os fracos com os
gentílico-cristãos ou com os judaico-cristãos: “Paulo dá mesmo a
entender que os fracos devem ser procurados nas camadas sociais mais baixas”.
Postado por Sérgio Gomes
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