sábado, 31 de agosto de 2013

Origem e conceito do termo “Igreja”






Origem e conceito do termo “Igreja”

No Novo Testamento, o conceito mais importante aplicado às primeiras comunidades cristãs provém da palavra grega ekklesía. Ele foi utilizado para designar desde as comunidades domésticas individuais até a totalidade dos crentes em Cristo. O significado etimológico da palavra deriva de ek-kaleo e significa “chamados para fora”. O termo vem do vocabulário secular e designa assembléia política dos cidadãos no mundo antigo.
Na obra História Social do Protocristianismo, Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann apontam para os dois aspectos mais comuns do termo, tanto no uso secular, quanto no uso neotestamentário: como reunião efetiva e como comunidade. Desta forma, o termo serve para designar tanto as reuniões dos cristãos, quanto a totalidade da Igreja.
O termo foi utilizado tanto no contexto do Antigo Testamento, na tradução para o grego conhecida como Septuaginta (LXX), como no Novo Testamento. Neste sentido, o cristianismo assumiu uma conexão genealógica com o Antigo Testamento. Karl Ludwig Schmidt afirma a importância desse fato: A ‘igreja’ do NT continuou a ser designada com o mesmo vocábulo do VT, assim como Deus continua a ser chamado kyrios”. Ainda segundo K. L. Schmidt, o uso provável do termo no cristianismo primitivo deve ser atribuído aos judeu-cristãos de fala grega, oriundos da sinagoga helenística.
Deve-se perguntar, então, se os primeiros cristãos enxergavam-se apenas como uma seita dentro do judaísmo. Esta questão é crucial para entender o ministério da igreja a partir da sua própria auto-compreensão, visto que ela vai determinar a sua ação em relação a si mesma, em suas inúmeras funções, e ao mundo que a cerca, em todas as suas relações. K. L. Schmidt afirmou: “Na realidade o judaísmo oficial freqüentemente tratou como tal a primeira comunidade cristã. Esta, porém, se sentia como uma sinagoga com pretensões à exclusividade, isto é, de representar o verdadeiro judaísmo, o verdadeiro Israel.”. Werner Georg Kümmel corrobora com esta visão afirmando que:
“Não há na comunidade primitiva, nem no próprio Jesus, o pensamento conhecido dos profetas e que tanto os fariseus como o povo de Qumrã reivindicaram para si, a saber, que o seu grupo era o santo “resto” do povo de Deus, preservado por Deus para o fim dos tempos. Jesus, pelo contrário, falara da “Nova Aliança” que Deus estabelecera por meio de sua morte.”
Assim, Kümmel conclui que: “Logo a comunidade primitiva estava convicta de que, através de Cristo, Deus iniciara em seu meio a nova aliança salvífica escatológica, a qual haveria de abranger todo o povo”. Apontando, ainda, para a utilização do termoekklesíaacompanhado do genitivo “de Jesus” ou “de Cristo” pelos primeiros cristãos como outro fator que confirma esta tese: “Na mesma direção indica um segundo fato, a saber, que a comunidade primitiva se chamou de ‘comunidade’ (ou também ‘Igreja) de Jesus’ ou ‘comunidade do Cristo’.”
Sendo assim, fica claro que a auto-compreensão da comunidade cristã primitiva fundamentava-se sobre a certeza de que ela era a comunidade do Messias ressurreto, através de quem Deus iniciou a sua salvação escatológica e em quem a consumação do Reino de Deus é aguardada. A Igreja é, portanto, a nova comunidade de Deus. Leonhard Goppelt conclui: “Todos os que confessam Jesus como o Cristo, e somente eles, [...] constituem a comunidade escatológica da salvação”.

A função da Igreja como nova comunidade de Deus

O conceito do termo ekklesía no Novo Testamento aponta para a auto-compreensão da comunidade cristã primitiva como a nova comunidade de Deus. Esta realidade demanda uma outra questão: qual é, então, a função desta nova comunidade?
Segundo Joachim Jeremias, o novo povo de Deus é uma comunidade de fé: “A proclamação de Jesus visa sempre o apelo pessoal. [...] A resposta a esse apelo é a fé”.
Desta forma, a fé em Jesus é o elemento constitutivo dessa nova comunidade e, meia do que isso, a proclamação dessa fé é o instrumento pelo qual a comunidade se expressa e realiza-se neste mundo. O grupo dos discípulos é formado em círculos concêntricos que partem do “núcleo central que é constituído pelos doze mensageiros, que Jesus envia. Assim, nasce em meio a esse mundo a comunidade dos que pertencem ao reinado de Deus”, afirma J. Jeremias. A identidade desse povo é, pois, moldada a partir de seu caráter essencialmente proclamador e que descende de seu grupo central de doze discípulos que têm como missão fundamental a proclamação dessa fé.
Além disso, outra característica da nova comunidade de Deus é a sua filiação a Ele. Segundo J. Jeremias:
Sempre que as pessoas são convencidas pela boa-nova e aderem ao novo povo de Deus, passam do mundo da morte para o mundo da vida (Mt 8.22 par. Lc 9.60; Jo 5.24 cf. Lc 15.24,32). Passam, então, a fazer parte do reinado de Deus. Uma nova vida começa. Ela consiste em um novo relacionamento com Deus e com as pessoas.

A organização das primeiras comunidades cristãs

A composição e organização das comunidades neotestamentárias variaram de acordo com a época e com a localidade em que estava implantada. De acordo com Ekkehard W. Stegemann e Wolfgang Stegemann, as comunidades da Judéia podem ser divididas em três grupos:
“1. O ‘movimento de Jesus’ propriamente dito, isto é, o grupo ligado a Jesus em seu tempo de vida, para cujos membros geralmente se emprega, nos evangelhos, o conceito de “discípulo” (mathetés), o que, todavia, é errôneo, pois também era composto por mulheres. 2. ‘A protocomunidade de Jerusalém’ surgida após a morte de Jesus ou as “comunidades de Deus na Judéia” – como Paulo designa (Gl 1.22; 1Ts 2.14), distinguindo-as expressamente das “comunidades dos povos” (Rm 16.4). 3. As ‘comunidades messiânicas’, no período após o ano 70, da forma como estão representadas, em nossa opinião, nos Evangelhos de Mateus e João.”
Além desses grupos, eles identificam um outro grupo de comunidades do protocristianismo, é o das comunidades crentes em Cristo, estabelecidas nas diferentes cidades do Império Romano, especialmente entre os judeus da diáspora. Estas comunidades receberam grande influência de Paulo.
Nas comunidades de Deus na Judéia, a organização era marcadamente carismática. Gerd Theissen identifica os primeiros pregadores cristãos com o carismatismo itinerante, uma expressão agrária de pregadores carismáticos cujo ministério era voltado a curas e à pregação escatológica. O carismatismo itinerante era conhecido na Antigüidade e reconhecido na Didaquê, documento do final do primeiro século, e tem paralelo na prática dos filósofos cínicos.
Theissen lança luz sobre o comportamento dos transmissores e seus condicionamentos, afirmando as questões temporais estão ainda mais presentes nesta abordagem, pois leva em consideração fatores sócio-econômicos, como o trabalho dos carismáticos itinerantes que possuía duas faces: curas e pregação escatológica, entendendo-os como socialmente marginais e concluindo, portanto, que eles encontravam acolhimento entre as pessoas que, como eles, encontravam-se à margem da sociedade.
Segundo Stegemann, este carismatismo itineranteque sucedeu à morte de Jesus, especialmente no grupo mais estreito de seus discípulos e discípulas, passou por três fases. A primeira era a do carisma genuíno dos primeiros discípulos que partilharam das visões de Jesus ressurreto. A segunda foi a da “despersonalização” do carisma, onde as visões passam a um número cada vez maior de adeptos, que visa o alcance de um número cada vez maior de pessoas em Israel. A terceira foi a da institucionalização do carisma, onde aekklesía, a comunhão dos santos, era entendida como o núcleo dotado do Espírito, a assembléia escatológica do povo de Deus.
Além disso, Theissen afirma que seguir a Jesus, em princípio, era uma atitude concreta que se pode abordar sob dois aspectos: o religioso, como um encontro com o sagrado, e o sociológico, como uma variante do desarraigamento social apontando para uma crise daquela sociedade. A amplitude do fenômeno aponta para, nas histórias de vocação, palavras de seguimento e ordenações missionárias, que os carismáticos itinerantes não se limitam aos doze e nem aos apóstolos, mas abrange todos os discípulos (Mt 8.21; 10.42), profetas (Mt 10.41), justo (Mt 10.41) e mestres (At 13.1). Lucas informa que o grupo de carismáticos itinerantes não se limita aos doze ao informar do envio dos setenta (Lc 10.15) com as mesmas ordens dos doze (Lc 9.10ss). Indica também um grupo de profetas que imigram da Palestina para a Antioquia (At 11.27s), além de Ágabo (At 21.10). Os carismáticos andam em círculos de colaboradores (At 8.4; 19.19ss; 6.5; 8.1ss; 4.36; 22.3) e um grupo destes itinerantes era adversário de Paulo (2 Co 11.22).
carismatismo itinerante era um fenômeno amplo no cristianismo primitivo. O condicionamento social do desarraigamento no movimento de Jesus envolve uma existência apátrida motivada religiosamente pelo discurso dirigido aos discípulos e aos cansados e sobrecarregados (Mt 1.17; 11.28). É ligado ao mundo agrário, às camadas mais baixas e às camadas não tão baixas (camponeses e pescadores).
Nas comunidades paulinas fora da Judéia, inicialmente, aparecem algumas funções de liderança, mas incipientes. Não se deve pensar em “cargos”, mas em “papéis”, como era comum nos grupos carismáticos antigos. Entretanto, mais tarde, pode-se perceber essa situação se modificou. Nas cartas pastorais, a ekklesía é chamada de “casa de Deus” (1Tm 3.15) e seu “líder” ou “supervisor” (epískopos) deve presidir a economia (oikonómos) doméstica divina, tendo demonstrado competência na sua própria casa. Além deles há uma série de exortações quanto aos papéis internos da casa.

Assim, analisando a atitude paulina em relação àscomunidades neotestamentárias na relação entre “Os fortes e os fracos em Corinto”, G. Theissen concorda que é certo que fatores sócio-culturais tenham influenciado nesta questão, mas prefere procurar por outros fatores ao invés de identificar os fracos com os gentílico-cristãos ou com os judaico-cristãos: “Paulo dá mesmo a entender que os fracos devem ser procurados nas camadas sociais mais baixas”.


Postado por Sérgio Gomes


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