quarta-feira, 16 de outubro de 2013

O Julgamento de Nosso Senhor perante o Sinédrio



Sermão pregado na manhã de domingo, 5 de fevereiro de 1882,
Por Charles Haddon Spurgeon,


No Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres.


“E todos o consideraram culpado de morte.”Marcos 14:64.

Seleciono esta frase em particular porque o costume exige um texto; mas na realidade seguiremos a narrativa inteira do julgamento de nosso Senhor diante do sumo sacerdote. Veremos como o Sinédrio chegou à sua injusta sentença, e mais o que fizeram posteriormente, assim, em um só sentido, estaremos nos apegando ao nosso texto. Acabamos de ler três passagens: João 18:12-24; Marcos 14:53-65; e Lucas 22:66-71. Por favor, tenham estas passagens em mente enquanto repasso a infeliz história.
A narração da aflição de nosso Senhor, se a estudamos cuidadosamente, é extremamente desoladora. Uma pessoa não pode meditar nisto por muito tempo sem derramar lágrimas; de fato, eu me vi forçado a abandonar minhas meditações sobre este tema devido ao excesso de emoção. Contemplar os sofrimentos de um Ser tão desejável em Si mesmo e tão amoroso para conosco, é suficiente para fazer com que o coração se parta por completo. Contudo, esta desolação de sentimentos é sumamente útil: seu efeito posterior é na verdade, admirável.
Depois de chorarmos por Jesus somos transportados acima da nossa dor. Não há em absoluto nenhuma consolação debaixo do céu como esta, pois as aflições de Cristo eliminam o aguilhão de nossas próprias aflições, e as tornam inofensivas e toleráveis. Uma sofrida contemplação da aflição de nosso Senhor diminui de tal maneira nossas angústias, que chegamos a considerá-las como ligeiras aflições, triviais demais, demasiadamente insignificantes para serem mencionadas no mesmo dia. Quando acabemos de contemplar os agudos quebrantos do Varão de Dores, não nos atreveremos a registrar-nos de forma alguma na lista dos afligidos. As feridas de Jesus destilam um bálsamo que cura todos os ferimentos fatais. E isto não é tudo, ainda que seria muito em um mundo de angústia como este; mas há um estímulo incomparável no que é relativo à paixão do Senhor. Mesmo que tenham sido quase esmagados pelo quadro das agonias de seu Senhor, saíram de lá fortes, decididos, fervorosos, consagrados.
Nada comove mais as profundezas de nossos corações como a angústia de Seu coração. Nada é demasiado difícil para que o tentemos ou o suportemos por Aquele que se sacrificou a Si mesmo por nós. Ser vilipendiados pela amada causa de quem sofreu tanta vergonha por nós, não se converte em uma grande aflição; incluso o opróbrio, quando é suportado por Ele, se torna em maiores riquezas que todos os tesouros do Egito. Sofrer por Ele no corpo e na mente, incluso até a morte é um privilégio muito mais que uma exigência: tal amor inflama nossos corações de tal forma, que ansiamos veementemente encontrar uma forma de expressar nosso débito. Aflige-nos pensar que nossas melhores intenções sejam uma coisa muito pequena; mas estamos solenemente decididos a não dar nada que não seja o melhor de nós a Quem nos amou e se entregou por nós.
Eu creio também que, frequentemente, muitos corações indiferentes foram grandemente afetados pelos sofrimentos de Jesus: foram perturbados em sua indiferença, convencidos da sua ingratidão, separados de seu amor pelo pecado, e atraídos a Cristo ao escutar o que Ele suportou no seu lugar. Nenhum ímã pode atrair aos corações humanos como a cruz de Cristo. Suas feridas ocasionam que até corações de pedra sangrem. Sua afronta envergonha a própria obstinação. Os homens não caem tão abundantemente frente ao grandioso arco de Deus, como quando suas flechas são encharcadas com o sangue de Jesus. Esses dardos que estão armados com Suas agonias, causam feridas que nunca podem ser curadas, exceto por Suas próprias mãos traspassadas. Estas são as armas que matam o pecado e salvam o pecador, eliminando de um só golpe tanto sua confiança em si mesmo como seu desespero, convertendo-o em um cativo desse conquistador cuja glória é tornar os homens livres.
Esta manhã, não quero pregar somente as doutrinas que saem da cruz, mas sim a  cruz mesma. Eu suponho que essa foi uma das grandes diferenças entre a primeira pregação de todas e a pregação depois da Reforma. Depois da Reforma ressoavam claramente desde todos os púlpitos a doutrina da justificação pela fé e outras gloriosas verdades, que eu espero que recebam mais e mais relevância; mas os primeiros pais da igreja proclamaram as mesmas verdades de uma maneira menos teológica. Se eles tratavam pouco sobre a justificação pela fé, pregavam com maravilhosa profusão sobre o sangue e seu poder limpador, sobre as feridas e sua eficácia curadora, sobre a morte de Jesus e nossa vida eterna. Nós retomaremos seu estilo por uns momentos, e pregaremos os fatos sobre nosso Senhor Jesus Cristo, em vez de falar sobre suas inferências doutrinárias. Oh, que o Espírito Santo leve as aflições de nosso Senhor tão perto de cada coração, que cada um de nós conheça a comunhão com Seus sofrimentos, e possua fé em Sua salvação e um reverente amor pela Sua pessoa.

I. Começaremos nossa narrativa esta manhã, pedindo-lhes primeiro, que pensem no INTERROGATÓRIO PRELIMINAR DE NOSSO BENDITO SENHOR E MESTRE, REALIZADO PELO SUMO SACERDOTE. Eles trouxeram a nosso Senhor desde os limites do jardim; e quando o trouxeram, o sujeitavam firmemente, pois lemos: “os soldados do presidente, conduzindo Jesus.” Evidentemente estavam temerosos do prisioneiro, mesmo quando o tinham inteiramente em seu poder. Ele era toda benignidade e submissão; mas a consciência acovardava a todos eles, e por isso tinham todo o cuidado que os covardes empregam para mantê-lo entre suas garras. Como a corte não havia se reunido em número suficiente para um interrogatório geral, o sumo sacerdote decidiu que ocuparia o tempo interrogando pessoalmente a seu prisioneiro.
Principiou seu maligno exercício. O sumo sacerdote perguntou a Jesus coisas sobre Seus discípulos. Não podemos dizer quais foram as perguntas, mas eu suponho que eram algo parecido com isto: “Como foi que te rodeaste de um grupo de homens? Que faziam eles contigo? Que pensavas conseguir com eles? Quem eram eles? Não eram um grupo de fanáticos, homens descontentes e prontos para a sedição?” Eu não sei como o astuto Caifás faria suas perguntas; mas o Salvador não deu resposta a esta indagação particular. Que poderia ter dito se houvesse tentado responder? Ah, irmãos, que coisa boa teria dito de Seus discípulos? Podemos ter certeza que Ele não diria nada de mau. Mas poderia ter dito: “no que se refere a meus discípulos, um deles me traiu; ainda tem em sua mão o dinheiro de sangue que vocês pagaram e ele por mim. Outro deles, ali no pátio, antes que cante o galo, negará que me conheceu alguma vez, e agregará juramentos e maldições em sua negação: quanto aos demais, todos me abandonaram e fugiram.” Portanto, nosso Senhor não disse nada acerca de Seus discípulos, pois não se converteria em acusador dos Seus, pois Ele não veio condená-los, e sim, justificá-los.
O sumo sacerdote também Lhe perguntou coisas sobre Sua doutrina. Eu suponho que Lhe perguntaria: “que novo ensinamento é este? Por acaso nós não somos capazes para ensinar ao povo: já que os escribas são tão entendidos na lei, os fariseus são tão cuidadosos do ritual e os saduceus são tão filosóficos e especulativos? Por que precisas te infiltrar neste domínio? Eu te considero somente um pouco mais que o filho de um camponês: qual é esse estranho ensinamento teu?” A esta indagação sim, nosso Senhor respondeu, e que triunfante resposta deu! Oh, que sempre pudéssemos falar, quando é conveniente falar, tão mansa e sabiamente como Ele! Ele lhe respondeu: “Eu publicamente falei ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde se reúnem todos os judeus, e nada falei em  oculto. Por que perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram, o que foi que eu falei; aqui estão, eles sabem o que eu disse.” Oh, irmãos, nenhuma réplica à calúnia pode comparar-se com uma vida irrepreensível. Jesus tinha vivido no pleno resplendor do dia onde todos podiam vê-lo, e, contudo, foi capaz de desafiar a acusação e dizer: “Pergunta aos que escutaram.” Bem-aventurado é o homem que não tem necessidade de defender-se porque suas obras e palavras são sólidos testemunhos de sua retidão e bondade. Nosso Salvador respondeu ao Seu interrogador muito pacientemente, e, contudo, muito eficazmente, apelando para os fatos. Ele se apresenta diante de nós tanto como o espelho da mansidão como o paradigma da perfeição, e a calúnia se retorce a Seus pés como uma serpente ferida. Que grande deleite é contar com este triunfante intercessor como nosso advogado, que argumenta Sua própria justiça em nossa defesa! Ninguém poderia impugnar Sua absoluta perfeição, e essa perfeição cobre todos Seus santos neste dia.
Quem nos acusará, agora que Cristo decidiu interceder por nós? Esta esmagadora resposta, contudo, trouxe sobre o Salvador uma bofetada de um dos oficiais do tribunal que estava ali. Este ato não foi sumamente repulsivo? Aqui nós temos a primeira de uma nova categoria de agressões. Até este ponto não havíamos nos inteirado de bofetadas e golpes; mas agora se cumpriu o que foi dito: “ferirão com vara na face ao juiz de Israel.” Esta foi a primeira de uma longa série de agressões. Eu me pergunto quem seria o homem que esbofeteou o Senhor desta maneira. Eu desejaria que a réplica do Senhor para com ele pudesse ter influenciado seu coração a ponto de arrepender-se; mas, se assim não fosse, com certeza estava à frente da caravana de agressões pessoais dirigidas contra a pessoa de nosso Senhor: sua mão ímpia foi a primeira a golpeá-lo. Seguramente morreu na impenitência, a lembrança desse golpe permanecerá como um verme que nunca morre dentro dele. Hoje grita: “eu fui o primeiro a golpeá-lo: Eu golpeei Sua boca com a palma da minha mão.”
Os escritores de antigamente que escreveram sobre a Paixão, nos dão diversos detalhes das lesões infligidas contra o Salvador por esse golpe; mas nós não lhe outorgamos nenhuma importância a tais tradições, portanto, não as citaremos, mas diremos simplesmente que havia uma crença generalizada na igreja que este golpe foi muito cruel, e causou muita dor ao Salvador. Contudo, ainda que tenha sentido esse golpe, e talvez foi sacudido por ele, o Senhor não perdeu Sua compostura, nem mostrou o menor ressentimento. Sua resposta foi tudo o que deveria ser. Não há nenhuma palavra em demasia. Ele não diz: “Deus te golpeará a ti, parede caiada!” como o apóstolo Paulo fez. Nós não censuraremos o servo, mas louvaremos muito mais ao Senhor. Ele disse mansamente: “Se falei mal, dá testemunho do mal; e, se bem, por que me feres?”
Isso bastaria, com certeza, se houvesse ficado algum remanescente de benevolência no coração do agressor, para fazê-lo mover sua mão até o seu peito movido por uma dor penitencial. Nós não nos surpreenderíamos se tivesse clamado: “me perdoe, oh Tu, que és divinamente manso e benevolente, e me permita desde este momento ser Teu discípulo.” Desta maneira vimos a primeira parte dos sofrimentos de nosso Senhor na casa do sumo sacerdote, e a lição dela é justamente esta: sejamos mansos e humildes de coração como foi o Salvador, pois ali reside Sua força e dignidade. Vocês me dirão que eu já disse isso antes. Sim, irmãos, e terei que dizê-lo muitas vezes mais diante de vocês e aprendi bem a lição. É difícil ser manso quando alguém é falsamente acusado, ser manso quando alguém é duramente interrogado, ser manso quando um astuto adversário está à caça, ser manso quando alguém se encolhe ao receber um golpe atroz que foi uma afronta para uma corte de justiça. Vocês escutaram da paciência de Jó, mas aquela paciência perde a cor diante da paciência de Jesus. Admirem Sua paciência, mas não se contentem em admirar, imitem Seu exemplo, descrito abaixo deste cabeçalho e sigam cada curso.
Oh Espírito de Deus, ainda tendo Cristo como exemplo, não aprenderemos a mansidão a menos que Tu nos ensines; e ainda tendo a Ti como um mestre, não a aprenderemos a menos que tomemos Seu jugo sobre nós e aprendamos d'Ele; pois é unicamente a Seus pés, e debaixo da Tua unção divina que nos tornaremos mansos e humildes de coração, e acharemos descanso para nossas almas.
Por tanto, o interrogatório preliminar foi concluído, e não foi finalizado em absoluto como um êxito para o sumo sacerdote. Ele interrogou Jesus e o golpeou, mas a provação não produz nada que possa contentar o adversário. O prisioneiro é supremamente vitorioso, já que o agressor foi frustrado.
II. Agora vem uma segunda cena, A BUSCA DE TESTEMUNHAS CONTRA ELE. “E os principias dos sacerdotes e todo o concílio buscavam algum testemunho contra Jesus, para o matar, e não o achavam.” É uma estranha corte a que se reúne com o desígnio de encontrar culpa no prisioneiro, decididos, de uma forma ou outra a conseguir sua morte. Eles devem proceder de acordo às normas da justiça, e assim substituem testemunhas, ainda que todo o tempo violem o espírito da justiça, pois vasculham Jerusalém para encontrar testemunhas que cometam perjúrio para acusar o Senhor. Cada membro do concílio escrevia o nome de alguém que pudesse ser trazido de fora, pois as pessoas tinham vindo de todas as partes da terra para guardar a Páscoa, e com certeza alguns poderiam ser rastreados, em um lugar ou outro, que lhe dissessem alguma coisa que pudesse ser acusável. Introduzem, portanto, a todo a quem que possa encontrar dessa classe degradada que se aventure a cometer perjúrio, se houvesse um suborno disponível. Eles vasculharam Jerusalém para descobrir testemunhas contra Jesus; mas tinham muita dificuldade para ter êxito em seu desígnio, porque estavam obrigados a examinar a testemunha à parte, e não podiam fazer que concordassem. É difícil conseguir que as mentiras concordem, mas em troca, as verdades são cortadas com o mesmo molde.
Além disso, havia muitos tipos de testemunhas que podiam ser encontradas com facilidade, mas não se atreviam a apresentá-los. Tinham muitas pessoas que poderiam testemunhar que Jesus tinha falado contra a tradição dos anciãos; mas quanto a isso, havia alguns no concílio, isto é, os saduceus, que estavam de acordo com Ele em grande parte. Não tinha lógica apresentarem uma acusação sobre a qual não tinham uma unanimidade consensual. Suas denúncias dos fariseus não podiam ser apresentadas como acusação, pois estas estavam de acordo com os saduceus; tampouco podiam alegar Seu clamor contra os saduceus, pois nisto, os fariseus estavam de acordo com Ele.
Vocês lembrarão como Paulo, quando foi apresentado diante desse Sinédrio, se aproveitou dessa divisão de opinião e clamou: “Eu sou fariseu, filho de fariseu; no tocante à esperança e ressurreição dos mortos, sou julgado”; e desta maneira criou uma dissensão no conclave, que por um tempo trabalhou a seu favor. Nosso Senhor se apossou de um terreno mais elevado e mais nobre, e não se inclinou para converter a insensatez deles em algo que o beneficiaria; contudo, estando eles conscientes de suas dissensões internas, evitaram cautelosamente esses pontos sobre os quais não estavam em harmonia. Eles poderiam apresentar sua antiga queixa de que o Senhor Jesus não observava o sábado à maneira deles; mas, então, se tornaria mais público o fato de que havia curado enfermos no dia de sábado. Não os ajudaria em nada publicar este fato, pois, quem pensaria em matar uma pessoa por ter ela aberto os olhos a um cego de nascença, ou por ter restaurado uma mão seca em um sábado? Esse tipo de testemunho foi, portanto, descartado.
Mas, não poderiam ter encontrado algumas testemunhas que jurassem que Ele havia falado sobre um reino que estava estabelecendo? Não poderia isto, ter sido imediatamente interpretado como uma incitação à sedição e rebelião? Sim, mas essa era uma acusação que teria de ser submetida ao Tribunal Cível de Pilatos, mas a Sua acusação era em um tribunal eclesiástico. Além disso, havia herodianos no concílio que estavam muito inquietos debaixo do jugo romano, e não poderiam ter a cara de condenar alguém por ser um patriota; e, ademais, o povo que estava fora, teria simpatizado muito mais com Jesus se tivessem suposto que Ele os guiaria em uma rebelião contra César. Portanto, eles não podiam forçar esse ponto. Devem ter se sentido grandemente confundidos sem saber o que fazer; especialmente quando incluso naqueles pontos os quais decidiram apresentar às testemunhas, tão logo abriam suas bocas, se contradiziam entre si.
Por fim as tinham. Apareceram dois cuja evidência mais ou menos concordava; E estes afirmaram que numa determinada ocasião, Jesus tinha dito: “Eu derrubarei este templo, construído por mãos de homens, e em três dias edificarei outro, não feito por mãos de homens.” Aqui havia uma blasfêmia contra a santa e bela casa do Senhor, e isso bastaria. Agora, o Salvador tinha dito algo que era semelhante ao testemunho destas falsas testemunhas, e um mal entendido tinha feito tudo ainda mais semelhante; mais ainda assim, o que essas testemunhas falaram era uma mentira, e não era menos mentira porque havia uma sombra de verdade, pois o pior tipo de mentira é aquela produzida a partir de uma verdade: causa um dano muito maior que se fosse uma falsidade de início ao fim.
O Salvador não tinha dito: “Eu vou destruir este templo”; Ele disse: “Derribai este templo,” ou seja, “Vocês o destruirão, e podem destruí-lo.” Ele não tinha se referido ao templo de Jerusalém; Ele falou sobre o templo do Seu corpo que seria destruído. Cristo nunca disse: “Destruí este templo feito a mão, e edificarei outro feito sem mãos”: na Sua linguagem não há nenhuma alusão às mãos em absoluto. Estes refinamentos procediam da própria invenção deles, e Sua linguagem não tinha nenhum vínculo com a deles. Ele não tinha dito: “Eu edificarei outro”; Ele havia dito: “o levantarei,” que é algo muito diferente. Ele queria dizer que Seu corpo, depois de ser destruído, seria outra vez levantado no terceiro dia. Eles tinham alterado uma palavra aqui e outra acolá, o modo de um verbo e a forma de outro, e assim colocaram palavras na boca de Jesus, que Ele nunca havia pensado. Contudo, inclusive na acusação, não concordavam. Um disse uma coisa a respeito, e outro disse outra, de tal forma que inclusive esta vil acusação não podia ser utilizada contra o Salvador. Sua falsidade remendada estava feita de um material tão podre que as peças não se sustentariam juntas. Eles estavam prontos a jurar qualquer coisa que viesse à suas mentes que cometiam perjúrio, mas não se podia conseguir que dois deles jurassem pelo mesmo testemunho.
No entanto o Senhor permanece calado; como ovelha diante de Seus tosquiadores, emudeceu, e não abriu Sua boca; e eu suponho que a razão foi em parte para cumprir a profecia, e, em parte, porque a grandiosidade de Sua alma não poderia rebaixar-se a contender com mentirosos, e sobre tudo, porque Sua inocência não necessitava nenhuma defesa. O que é culpado em alguma medida, está ávido por desculpar-se e arranjar as coisas: suas desculpas sugerem usualmente aos homens experientes a crença de que poderia haver alguma base para a acusação. O que é perfeitamente inocente não tem nenhuma pressa para responder aos seus caluniadores, pois logo eles se respondem entre si. Nosso Senhor não desejava entrar em uma pendência com eles, para não provocá-los a expressar mais falsidades. Se as palavras não podem ajudar, então, na verdade, o silêncio é sábio: quando o único resultado havia sido provocar Seus inimigos a incrementar suas iniquidades, foi uma compaixão magnânima a que conduziu o caluniado Salvador a não dizer nada.
Não devemos deixar de advertir o consolo que em alguma medida havia sido ministrado a Nosso Senhor pela acusação que foi apresentada como a melhor. Ele está ali, e sabe que estão a ponto de sentenciá-lo à morte, mas eles mesmos O lembram que o poder deles sobre Ele tem um contrato de arrendamento não maior de três dias, e ao final desse curto período, Ele será levantado de novo, e já não estará mais à sua disposição. Seus inimigos lhe deram testemunho da ressurreição. Não digo que Sua memória fosse fraca, ou que possivelmente tivesse esquecido em meio às Suas aflições, mas, contudo, nosso Senhor era humano, e algumas formas de consolo que são valiosos para nós, eram úteis para Ele.
Quando a mente é torturada com uma falsidade maliciosa, e o homem inteiro é sacudido por dores e aflições, é bom que nos lembrem das consolações de Deus. Lemos sobre alguns que foram “atormentados, não aceitando o resgate,” e foi a esperança da ressurreição o que os sustentou. Nosso Senhor sabia que Sua alma não seria deixada nas moradas da morte, e que Sua carne não veria corrupção, e as falsas testemunhas trouxeram isto vividamente diante de Sua mente. Agora, na verdade, nosso Redentor podia dizer: “Derribai este templo, e em três dias o levantarei.” Estes corvos trouxeram ao Salvador pão e carne. Nestes leões mortos nosso glorioso Sansão encontrou mel. Sustentado pelo gozo colocado diante Dele, despreza a vergonha. Estranho é que das bocas daqueles que buscavam Seu sangue, veio o memorial de uma de Suas maiores glórias.
Agora, irmãos, até aqui aprendemos outra vez a mesma lição, ou seja, cresçamos em mansidão, e a demonstremos guardando silêncio. A eloquência é difícil de adquirir, mas o silêncio é muito mais difícil de praticar. Um homem pode aprender mais rápido a falar bem que a não falar de tudo. Temos tanta pressa por reivindicar nossa própria causa que a estragamos com uma linguagem irrefletida: se fôssemos calmos, benevolentes, tranquilos, pacientes como foi o Salvador, nosso caminho para a vitória seria muito mais fácil.
Observem, ademais, a armadura que cobria Cristo: vejam o escudo invulnerável de Sua santidade. Sua vida era tal que a calúnia não podia armar uma acusação contra Ele que durasse o suficiente para poder ser repetida. As acusações eram tão frágeis, que, como borbulhas, se desvaneciam tão rapidamente como viam a luz. Os inimigos de nosso Senhor estavam totalmente desconcertados. Eles lançavam seus dardos contra Ele, e como se caíssem sobre um escudo de ardente diamante, cada flecha era quebrada e consumida.
Aprendamos também esta outra lição: que seremos distorcidos. Podemos contar que, para ouvidos hostis, nossas palavras terão outros significados que aquele que nos propúnhamos dar; podemos esperar que quando ensinamos uma coisa que é verdadeira, eles inventarão que expressamos outra coisa que é falsa; mas não devemos temer esta prova de fogo como se fosse algo estranho. Nosso Senhor e Mestre a suportou e os servos não escaparão dela. Portanto, suportem a aspereza como bons soldados de Jesus Cristo, e não tenham medo. No meio do estrépito destas mentiras e perjúrios, escuto o assobio pacífico e delicado de uma verdade sumamente preciosa, pois a semelhança de quando Jesus esteve diante do tribunal por nós, e eles não podiam confirmar alguma acusação sobre Ele, assim será quando estejamos Nele no último grande dia, lavados em Seu sangue e cobertos com Sua justiça, nós também seremos absolvidos. “Quem acusará os eleitos de Deus?” Se Satanás se apresentasse como o acusador dos irmãos, seria recebido pela voz: “O Senhor te repreenda, oh Satanás; sim, o Senhor que escolheu Jerusalém, te repreenda. Não é este um tição tirado do fogo?” Sim, amados, nós também seremos absolvidos da calúnia.
Então os justos resplandecerão como o sol no reino de seu Pai. A gloriosa justiça Daquele, que foi falsamente acusado, livrará os santos e toda iniquidade fechará sua boca.
III. Mas não devo demorar-me demasiado em temas como estes, e, portanto, prossigo AO INTERROGATÓRIO PESSOAL que se seguiu ao fracasso de querer apresentar testemunhas. O sumo sacerdote, demasiadamente indignado para ficar sentado, se põe de pé e se inclina sobre o prisioneiro como um leão rugindo sobre sua presa, e começa a interrogá-lo de novo. Estava fazendo algo injusto. Por acaso o juiz que tem por ofício administrar a lei, se daria ao trabalho de demonstrar a culpabilidade do prisioneiro, ou, o que é pior, trataria de extrair uma confissão do acusado que pudesse ser usada contra ele? Isto implicava uma confissão tácita de que se tinha demonstrado a inocência de Cristo até esse momento. O sumo sacerdote não teria necessidade de tirar algo do acusado se houvesse tido material suficiente contra ele por outro lado. O julgamento havia sido um completo fracasso até esse ponto, e ele o sabia, e estava roxo de raiva. Agora ele tenta intimidar o prisioneiro, para poder arrancar-lhe alguma declaração que pudesse resolver qualquer problema de conseguir testemunhas, e assim liquidar o assunto.
A pergunta foi formulada com uma solene intimação, e alcançou seu propósito, pois o Senhor Jesus de fato falou, ainda que soubesse que com isso estava proporcionando uma arma contra Si. Ele se sentiu obrigado a responder ao sumo sacerdote de Seu povo quando usou tal encantamento, apesar de que esse sumo sacerdote era um homem mau; e não podia escapar de uma acusação tão solene para que não parecesse que por Seu silêncio estava negando a verdade sobre a qual está assentada a salvação do mundo.
Assim que, quando o sumo sacerdote lhe perguntou: “És tu o Cristo, filho do Deus Bendito?”, quão clara e franca foi a resposta do Senhor. Ainda que Ele sabia que isto acarretaria a Sua morte, deu testemunho de uma boa confissão. Ele claramente disse: “Eu o sou,” e logo acrescentou à essa declaração: “e vereis o Filho do Homem”—e desta maneira expõe Sua humanidade bem como Sua deidade—“assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu.”
Que fé tão majestosa! É maravilhoso pensar que estivesse tão calmo como para confrontar aos que zombavam Dele, e reivindicar Sua glória quando se encontrava sumido nas profundezas da vergonha. Foi como se dissesse: “vocês estão servindo como meus juízes, mas logo Eu estarei julgando-os: pareço a vocês um insignificante camponês, mas Eu sou o Filho do Deus Bendito; vocês creem que me esmagarão, mas nunca o farão; pois logo me sentarei à destra do poder de Deus, e virei nas nuvens do céu.” Ele falou com audácia, como era apropriado. Eu admiro a mansidão que podia estar calada, e admiro a mansidão que podia falar suavemente, mas admiro muito mais a mansidão que podia falar com valentia, mas que continuava sendo mansa.
De uma maneira ou outra, quando nós respondemos com valentia, deixamos a dureza entrar pela mesma porta, ou se deixamos de fora nossa ira, somos propensos a esquecer nossa firmeza. Jesus nunca elimina uma virtude para dar espaço à outra. Seu caráter é completo, íntegro, perfeito, de qualquer maneira em que O vejamos. E seguramente, irmãos, isto deve ter trago outro doce consolo para o coração de nosso divino Mestre. Enquanto se encolhia debaixo desse duro golpe, enquanto se retorcia sob essas imundas acusações, enquanto suportava tal contradição de pecadores contra Ele, deve ter se sentido internamente satisfeito na consciência de Sua condição de Filho e Seu poder, e diante da perspectiva de Sua glória e triunfo. Um manancial de água brota de dentro de Sua alma por saber antecipadamente que se sentará à destra de Deus, e que julgará os vivos e os mortos, e que reivindicará os Seus redimidos.
É sábio ter estes consolos sempre à mão. O inimigo poderia não ver Seu poder consolador, mas nós sim o vemos. Para nós, de debaixo do altar procede um rio cujo suave fluir provê uma tranquila alegria a nossos espíritos. Alegria essa que as águas terrenas não podem competir. Mesmo agora ainda ouvimos o que o Pai diz: “Eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão.” Notem, antes que deixemos este ponto, que, praticamente, o julgamento e o interrogatório terminaram com a condenação de nosso Senhor, devido a ter confessado Sua deidade. Eles disseram: “Vós ouvistes a blasfêmia; que vos parece? E todos o consideraram culpado de morte.”
Eu não posso entender totalmente essas pessoas que se chamam ‘unitarianos’ e negam a deidade de nosso Senhor. Nós também somos unitarianos, pois cremos em um Deus, e em um único Deus; mas eles nos dizem que este Cristo bendito, nosso Senhor, não é Deus, e, contudo, reconhecem que Ele foi o mais excelente dos homens, o mais perfeito dos seres humanos. Eu não posso vê-lo assim.  Eu pensaria que é um blasfemador, e nada mais, se não fosse Deus; e os judeus, evidentemente, sustentavam essa opinião, e o tratavam de acordo com isso. Se Ele não tivesse dito que Deus era Seu Pai, eles não estariam tão zangados com Ele. Eles o condenaram à morte devido à afirmação de Sua deidade, e a declaração de que se sentaria à destra do Poder e julgaria o mundo.
Hoje em dia, multidões estão dispostas a aceitar Cristo como um mestre, mas não o aceitarão como o Filho de Deus. Eu não tenho dúvidas de que a religião cristã poderia ser recebida em muitos lugares se a sua força fosse tosquiada, se, de fato, sua própria alma e suas entranhas fossem arrancadas, ao proclamar Jesus como um dos profetas e nada mais. Vejam como nossos sábios falam Dele como alguém de uma linha de grandes reformadores, assim como Moisés, Samuel, Elias, e com frequência adicionam a Confúcio e a Maomé. Nós abrimos espaço para isto? Não, nem por um instante. Ele verdadeiramente é o Filho do Deus Bendito. Ele é divino. A acusação de blasfêmia deveria ser lançada contra Ele, se não fosse o Filho do Altíssimo.
IV. Agora devemos continuar e nos fixar por um segundo ou dois no tema da CONDENAÇÃO. O condenaram por Sua própria boca: mas isto, ainda que tivesse uma aparência de justiça, era realmente injusto. Diante do tribunal, o prisioneiro afirmou que Ele é o Filho de Deus. Qual é o problema? Por acaso não pode estar dizendo a verdade? Se for verdade, Ele não deve ser condenado e sim, adorado. A justiça requer que se faça um interrogatório para verificar se é o Cristo, o Filho do Bendito, ou não. Ele reclamou ser o Messias. Muito bem, todos os que estão na corte, estão esperando o Messias; alguns deles esperam que apareça logo. Não poderia ser este o enviado do Senhor? Que se faça um interrogatório de seus argumentos. Qual é sua linhagem? Onde nasceu? Algum dos profetas o confirmou? Fez milagres? Algumas dessas perguntas são devidas a qualquer homem cuja vida esteja em jogo.
Não podem condenar à morte justamente a um homem sem um exame que se adentre na verdade de sua defesa, pois poderia resultar que seus pronunciamentos fossem corretos. Mas não, eles não querem escutar ao homem que odeiam, e sua mera afirmação o condena; é blasfêmia, e deve morrer. Ele afirma ser o Filho de Deus. Vamos, então, Caifás e o concílio, convoquem testemunhas para a defesa. Perguntem se olhos cegos foram abertos, e se os mortos foram ressuscitados. Perguntem se Ele fez milagres tais como ninguém jamais fez no meio de Israel ao longo de todos os tempos. Por que não fazer isto? Oh, não, pela prisão e julgamento Ele será tirado, e Sua geração, quem a contará? Quanto mais curto o interrogatório, mais fácil será condená-lo injustamente. Ele disse que é o Cristo e o Filho de Deus, portanto, é digno de morte.
Ai, quantos há que condenam a doutrina de Cristo sem fazer as devidas investigações sobre ela; e a condenam pelos argumentos mais triviais. Vêm para escutar um sermão, e talvez encontram falhas nos gestos do pregador, como se isso  bastasse para negar a verdade que ele prega; ou talvez digam “isto é muito estranho; não podemos crer.” Por que não? Por acaso as coisas estranhas não são verdadeiras algumas vezes, e não são muitas verdades demasiado estranhas até que se familiarize com elas? Estes homens não querem condescender a ouvir a demonstração da confirmação de Cristo: não querem fazer nenhuma pergunta. E assim, como os sacerdotes judeus, praticamente gritam: “Morra! Morra!”
Ele é condenado à morte, e o sumo sacerdote rasga sua roupa. Eu não sei se ele usava naquele momento as roupas com as quais ministrava, mas sem dúvida levava algum traje peculiar de seu ofício sacerdotal, e este é o que rasgou. Oh, quão significativo foi isso! A casa de Aarão e a tribo de Levi rasgaram suas vestes, e o templo, em algumas horas, rasgou seu véu de cima abaixo: pois os sacerdotes e o templo foram igualmente abolidos. Eles desconheciam isso, mas tudo o que faziam tinha um significado singular: essas vestes rasgadas eram um índice do fato que agora o sacerdócio Aarônico havia sido rasgado para sempre, e o grandioso sacerdócio de Melquisedeque havia entrado, pois o verdadeiro Melquisedeque, nesse instante e nesse lugar, estava diante deles em toda a majestade de Sua paciência.
Observem que todos concordavam; não havia dissidentes; eles tinham tomado o cuidado, não tenho dúvidas, de não deixar que Nicodemos e José de Arimatéia soubessem algo sobre esta reunião. A convocaram durante a noite, e somente a ensaiaram muito cedo pela manhã, com o objetivo de guardar sua antiga lei rabínica que estabelecia que deviam julgar os prisioneiros quando houvesse a luz do dia. Eles apressaram o julgamento, e qualquer que pudesse falar contra a sentença sedenta de sangue, foi mantido fora do caminho.
A assembleia foi unânime. Ai da unanimidade dos corações ímpios contra Cristo! É surpreendente que haja tais discussões entre os amigos de Cristo, e tal unidade entre Seus inimigos, quando o ponto é sentenciá-lo à morte. Eu nunca ouvi de discussões entre os demônios, e também nunca li de divisões no inferno: todos eles são um no seu ódio contra Cristo e contra Deus. Mas aqui estamos divididos em seções e partidos, e com frequência, estamos em guerra uns com os outros. Oh Senhor de amor, nos perdoa: Rei da harmonia, vem e reina sobre nós, e nos conduz a uma perfeita unidade a Teu redor.
A sentença foi: “morte.” Não digo nada dela exceto isto: a morte era a sentença que eu merecia, a sentença que vocês mereciam, e eles a impuseram sobre nosso Substituto. “Digno de morte”—disseram—todos eles. Todas as mãos foram levantadas; todas as vozes disseram: “Sim, sim” ao veredicto. Contudo, não havia delito Nele. Antes, digamos que toda excelência era encontrada Nele. Quando ouço que Jesus é condenado a morrer, minha alma cai a Seus pés e clama: “Bendito Senhor, agora assumiste minha condenação; não há, portanto, nenhuma condenação para mim. Agora tomaste meu cálice de morte para sorvê-lo, e a partir deste momento, está seco para mim. Glória seja dada a Teu bendito nome, desde agora e para sempre.”
V. Quase sinto prazer que o tempo tenha corrido tanto, pois devo necessariamente colocar diante de vocês a quinta e mais dolorosa cena. Assim que estes malvados homens do Sinédrio O declaram culpado de morte, os servos, os guardas, e aqueles que custodiavam o salão onde se encontravam os principais sacerdotes, ávidos de agradar a seus senhores, e todos eles tocados pelo mesmo espírito brutal que morava neles, imediatamente começaram a ultrajar a infinita majestade de nosso Senhor.
Considerem O ULTRAJE. Permitam-me ler as palavras: “E alguns começaram a cuspir nele.” “Começaram a cuspir NELE!” Assim expressaram mais contundentemente o menosprezo que por meio de palavras. Fiquem atordoados, ó céus, e sintam um medo horrível. Sua face é a luz do universo, Sua pessoa é a glória do céu, e eles “começaram a cuspir nele!” Ai, meu Deus, que o homem seja tão vil! Alguns foram mais longe, e “começaram…a cobrir-lhe o rosto.”
É um costume oriental cobrir o rosto dos condenados, como se não fossem aptos a ver a luz, nem aptos para contemplar seus semelhantes. Eu não sei se foi por esta razão, ou como simples chacota, que cobriram Seu rosto para que não pudessem vê-lo, e para que Ele não pudesse vê-los. Como podiam desta maneira apagar o sol e tapar a bem-aventurança? Logo, quando tudo era escuridão para Ele, começaram a dizer: “Profetiza-nos Cristo, quem é o que te bateu?” Então outro fez o mesmo, e muitos foram as cruéis bofetadas que aplicaram a Seu bendito rosto.
Os escritores medievais se deleitavam em falar sobre os dentes que foram quebrados, das feridas em sua face, do sangue que escorria, da carne que foi golpeada e ferida; mas nós não nos atrevemos a imaginar isto. A Escritura se espalhou como um véu, e deixemos que fique aí. Contudo, deve ter sido um horrível espetáculo ver o Senhor da glória com Seu rosto todo manchado com a maldita saliva deles e ferido por seus punhos cruéis. Aqui o insulto e a crueldade tinham se combinado: o ridículo de Seus títulos proféticos e a desonra de Sua divina pessoa. Nada foi considerado suficientemente mau. Inventaram toda a vergonha e o escárnio que puderam, e Ele permaneceu ali, paciente, ainda que um só piscar de Seus olhos os teria consumido a todos em um átimo.
Irmãos, irmãs, isto é o que o nosso pecado merecia. Algo vergonhoso és tu, ó pecado! Tu mereces que te cuspam! Isto é o que o pecado está fazendo constantemente a Cristo. Sempre que vocês e eu pecamos, por assim dizer, cuspimos em Seu rosto: também tapamos Seus olhos tratando de esquecer que Ele nos vê; e também o golpeamos sempre que transgredimos e afligimos Seu Espírito. Não falemos dos cruéis judeus: pensemos em nós, e seremos humilhados por esse pensamento. Isto é o que o mundo ímpio está fazendo constantemente a nosso bendito Senhor. Eles também pretendem tapar Seus olhos que são a luz do mundo: eles também desprezam Seu Evangelho, e O cospem como algo totalmente desgastado e sem valor: eles também desprezam aos membros de Seu corpo através de Seus pobres santos afligidos que têm de aguentar calúnias e ultrajes por Sua amada causa.
E, contudo, por sobre tudo isto, me parece ver uma luz sumamente bendita. Cristo deve ser cuspido, pois Ele tomou nosso pecado: Cristo deve ser torturado, pois Ele está ocupando nosso lugar. Quem haverá de ser o carrasco de toda esta dor? Quem assumirá a tarefa de envergonhar a Cristo? Nossa redenção foi trabalhada desta maneira, mas quem será o escravo que executará esse miserável trabalho? Joguem os cachos mais bonitos das uvas de Escol; os joguem, mas quem os pisará e extrairá laboriosamente o vinho, o generoso suco que agrada a Deus e ao homem? Os pés serão os pés dispostos dos próprios inimigos de Cristo: eles extrairão Dele o que nos redimirá e destruirá todo o mal. Eu me regozijo de ver Satanás vencido na sua astúcia, e sua malícia convertida no instrumento de seu próprio transtorno. Ele pensa destruir a Cristo, e mediante esse ato, se destrói a si mesmo. Ele atrai o mal sobre sua própria cabeça e cai no buraco que cavou. Assim, todo mal trabalhará sempre para o bem do povo do Senhor; sim, seu maior bem muito frequentemente procederá daqueles que ameaçavam com sua ruína, e que os provocavam à maior angústia.
Três dias há de sofrer o Cristo e morrer e permanecer no sepulcro; mas depois disso, Ele deve pisar a cabeça da serpente e levar cativo o cativeiro, e isso, através do próprio sofrimento e vergonha que Ele agora está suportando; de igual maneira ocorrerá a Seu corpo místico, e Satanás será pisado debaixo de nossos pés dentro em pouco.
Deixo este tema, esperando que vocês o continuem em suas meditações. Aqui há três observações. A primeira é: quão prontos estamos a suportar a calúnia e o ridículo pela causa de Jesus. Não te encolerizes, nem penses que seja algo duro e que estamos debochando de ti. Quem és tu, querido amigo? Quem és tu? Quem poderia passar a ser quando comparado a Cristo? Se cuspiram Nele, por que não cuspiriam em ti? Se o esbofetearam, por que não te esbofeteariam a ti? Por acaso o Senhor terá de suportar toda a dureza? Ele terá de ter toda a amargura, e tu toda a doçura? Belo soldado és tu, que desejas uma melhor sorte que teu Capitão!
Continuando, quão sinceramente devemos honrar ao nosso amado Senhor. Se os homens estavam tão ávidos por envergonhá-lo, nós devemos estar dez vezes mais empenhados em dar-lhe glória. Há algo que poderíamos fazer hoje, pelo meio do qual Ele pudesse ser honrado? Executemos. Podemos fazer algum sacrifício? Podemos realizar alguma tarefa difícil que O glorifique? Não devemos deliberar, mas sim fazer esta tarefa de imediato com toda nossa força. Temos de ser criativos na forma de glorificar ao Senhor, assim como Seus algozes foram engenhosos nos métodos para O envergonhar.
Finalmente, quão seguramente e quão docemente podem, todos os creem Nele, vir e descansar suas almas em Suas mãos. Certamente eu sei que quem sofreu isto, posto que era verdadeiramente o Filho do Bendito, tem a capacidade de nos salvar. Tais aflições hão de ser uma plena expiação por nossas transgressões. Glória seja dada a Deus, porque essa saliva em Seu rosto significa um rosto limpo e resplandecente para mim. Essas falsas acusações contra Seu caráter significam que não há condenação para mim. Essa sentença de morte para Ele, demonstra a certeza do nosso texto que vimos no domingo passado pela manhã:
“Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem vida eterna.” Descansemos docemente em Jesus, e se nossa fé se vê agitada em algum momento, vamos à sala da casa de Caifás, e vejamos ao Justo estando no lugar dos injustos, ao Imaculado suportando a condenação pelos pecadores. Julguemos e condenemos cada pecado e cada dúvida na sala do sumo sacerdote, e saiamos gloriando-nos porque o Cristo venceu por nós, e agora esperamos Sua aparição com deleite. Que Deus os abençoe, irmãos, por Cristo nosso Senhor. Amém.

Autorização e permissão deste para o português para o Projeto Spurgeon, 
Todo direito de tradução protegido por lei internacional de domínio público
Sermão nº 1643—Volume 28 do Metropolitan Tabernacle Pulpit

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